É curioso voltar a uma leitura através das frases a que se dá destaque, juntamente com um regresso ao livro anterior por aquilo que se escreveu, e ver as semelhanças que não foram sentidas aquando da leitura, no entanto, não é possível ignorá-las. A procura por um pai e a aspereza das relações entre as pessoas, juntamente com a racialização, a fé, a família, a educação (e os livros!) e o abandono, deixam feridas abertas em cada personagem e ESTELA não é excepção.
“(…) mordi meu lábio inferior até que ele sangrasse um pouco. Mordi até sentir o gosto metálico do sangue. Voltei para a sala e, quando o churrasco foi servido, senti o sal grosso agindo na minha ferida recente. Engoli o choro e a dor. Decidi que era assim que eu iria lidar com o sofrimento dali para a frente - não se empurra nenhuma mágoa para debaixo do tapete, me disse Melissa certa vez. E ela tinha razão.”
A geografia sinuosa dos afectos é novamente pano de fundo e em todas as latitudes existem outros seres à procura de rumo. De respostas.
“O amor é uma ficção da nossa cabeça. Disse que descobriu isso num livro chamado Dom Casmurro. Que tudo que importa são as provas do afeto. O amor não existe, Estela.
Confesso que me senti triste com aquilo. Melissa dizia coisas para me educar, eu sabia. Mas eu também acho que Melissa precisava ser educada (…) Eu concordei. Então ela continuou:
Deus precisa ser educado por nós, Estela. Às vezes, tenho a impressão de que Deus não é profundo. Acho que foi por isso que ele ensinou Jesus a caminhar sobre as águas. Deus não sabe mergulhar.
Nós rimos.”
É verdade. Elas riram e nós também. Noutras passagens poderemos ficar com os olhos rasos d’água, tamanha é a injustiça ou a tristeza, de presenciar episódios que se repetem há séculos e que continuam a esmagar as meninas e as mulheres. E seguimos, questionando Deus e a profundidade dos seus ensinamentos.
Tenório explora uma personagem genuína, com uma voz muito peculiar, com tanto de incerteza como de exactidão. Estela aprende ao ritmo das exigências e dos abandonos sucessivos, limando as arestas que vão serrando a segurança da corda. Aqui e ali, ela tenta que a corda seja menos bamba.
“Eu só respondia sim para todas as perguntas dela. Dizer não era algo que eu ainda não tinha aprendido. A conquista do não é sempre uma coisa difícil.”
Com os «nãos» que Estela aprenderá a dizer, ela juntará uma pitada de certezas, sem esquecer de traçar as fronteiras que são precisas. Delimitará a influência do pai e a alçada da mãe, a intrusão de Deus e dos seus acólitos, a formatação da fé ou os destinos únicos que querem dar às mulheres. Questionará o papel da idade e a beleza que ser livre nas ideias traz a uma mulher.
“Augusto começou a chorar. (…) Mas não o abracei. Fiquei em silêncio ouvindo enquanto ele fungava o nariz. Os homens também têm a obrigação de chorar para ajudar a consertar o mundo.”
“(…) eu não devia ser responsável por ninguém. Eu sei que isso soa como egoísmo e talvez seja mesmo. Cuidar dele parecia um destino. Mas acontece que também não gosto de destinos. Tinha receio de estar condenada a uma vida única. Destinos únicos são sempre violentos. (…)
É muito interessante ir vendo como Estela (mesmo sem DEUS) aprende a escolher que feridas mantêm abertas e com que quantidade de sal vai temperando as suas acções, ficando a cada dia que passa mais hábil, “como se estivesse economizando a tristeza” e usando sabiamente cada metade do coração.
“Às vezes, ter consciência de que haveria um ser tão intrometido como Deus me parecia um tanto violento. Eu, que antes pensava que as ideias eram protegidas, ficava com medo de saber que Deus teria acesso a todos os meus pensamentos. Ninguém escapa de Deus. Nem os filósofos. Logo outra ideia surgiu: e se Deus não soubesse de nada. E se Ele ignorasse tudo, e se…”
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Leia a minha opinião sobre outro livro do autor, «O avesso da pele», aqui.
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