terça-feira, 24 de junho de 2025

«Boulder» de Eva Baltasar :: Opinião





A força sísmica da escrita de Eva Baltasar em pouco mais de 120 páginas.

“Tinha vivido agarrada a uma certeza impalpável, protegida por três ou quatro coisas indispensáveis que me diferenciavam de uma marginal, de uma excluída. Precisava de enfrentar o vazio, sonhei-o ao ponto de fazer dele um mastro, o centro do meu equilíbrio onde me seguro, quando a vida se desmorona à minha volta. Vinha do nada, envenenada, e ansiava por terras uivantes.” 
«Boulder», de Eva Baltasar (segunda parte de uma trilogia iniciada com Permafrost) é a confirmação da maturidade literária da autora catalã que rapidamente tem conquistado leitores dentro e fora de Espanha, muito pela força sísmica da sua escrita. Nesta narrativa breve, mas intensa, acompanhamos a protagonista, metaforicamente apelidada de Boulder, num percurso emocional conturbado de desejo, amor e maternidade entre a fragmentação e a manutenção da sua identidade.
“Fumo mais do que nunca, mas fumar sozinha na noite é uma maneira de alimentar o feitiço, convoca o corpo desejado e fá-lo entrar pouco a pouco, até chegar às reservas de ar, até atingir a lembrança mais querida presa na caixa estanque do peito (…) Já nem fodemos. A Samsa não tem sexo, tem um estaleiro obstruído por um único (…) Um filtro finíssimo fecha-lhe a boca do desejo. Dela, nada resta, foi transformada.”
Sem dúvida que o desejo é vibrante, e mesmo quando o desejo fica latente e surge a tensão, essa latência é sempre sentida na linguagem, aliás, a linguagem é o ponto mais forte deste livro. Diria até que o maior magnetismo é conseguido pela forma como a narradora sente e domina as palavras. Pensa-as.

“A língua é, e será sempre, um território ocupado. (…) Só a língua pode fazer-nos pertencer a um lugar, para não nos perdermos. É um substrato que alimenta. (…) Encoraja-nos e adoece-nos, desorienta o nosso instinto animal, torna-nos humanos. (…) Mas também pode ser a mais tirânica. Somos responsáveis por cada palavra, não há expressões inocentes."

Aliás, é precisamente na linguagem que Boulder encontra a sua complexidade.


Diria também que há uma outra complexidade subjacente ao romance, embora não a atribua à parentalidade nas relações homossexuais, mas à parentalidade per si, transversal a todas as pessoas que se vêem arrastadas pelo fluxo incontrolável de sentimentos que nascem com uma gravidez e com um filho e dizer nascem com a gravidez não é inocente e faz toda a diferença na história destas duas mulheres.

O tom do livro é ácido, afiado e sem dúvida desafia a feminização da parentalidade bem como a fronteira entre desejo de intimidade e o de solidão (ou individualidade?) e a predisposição, a construção e a intuição maternal, intensificando muito o papel de cada mulher nesta relação que é capaz de fluir num mar de gelo, por isso, a cada frase abre abismos tão belos quanto profundos nas crises existenciais de cada uma.

“Sinto-me estranha. Sou lodo remexido, escondo vidas que respiravam em sossego e que agora estão assustadas, ofegantes, zangadas. Não posso culpar ninguém das pancadas de pá e ancinho. Não sei o que procuro dentro de mim. Nem sequer sei se procuro alguma coisa, na verdade.”

O que está em jogo é menos a orientação sexual do casal e mais a inevitável transformação que a maternidade impõe e o nascimento de uma nova estrutura emocional. O que realmente está em jogo é o amor.

“Ouço-a falar com os meus cinco sentidos, ouço-a com o corpo inteiro, com tudo menos o coração, que parece querer espancar-me. Isto não estava nos nossos planos. Na verdade, nunca tínhamos feito planos, devorávamos a vida às dentadas. (…) Está nervosa, está recetiva, precisa receber no ventre a criança que encontrou na cabeça. E, sobretudo está cansada. Apercebo-me de que faço parte do seu cansaço, mas até isso me parece muito melhor do que não fazer parte dele de todo.”

“Porque o amor provoca sedimentos e os sedimentos têm memória.”

Boulder é ainda mais excepcional porque com a sua dualidade de sentimentos e sensações, transforma-se a cada frase, ela tanto é uma força da natureza, uma amante que corteja e apaparica como rapidamente se transforma numa wrecking ball, uma anti-heroína, uma gangster.

“Quando sai da casa de banho, é outra mulher, larga e benigna, os seios enormes escondidos por uma camisola violeta e as costuras demasiado evidentes das calças (…) Passaram mais de dez anos e a mulher que propõe ir jantar fora não conserva nem uma única célula da pessoa que conheci enquanto comia um lemoncake. O tempo afeiçoou-se a nós e desgastou-nos, afiou os dentes esfregando-os contra nós.”

Cada imagem é um soco — rápido, certeiro, sem espaço para distrações. A prosa é limpa porque os espinhos vão sendo enterrados na frustração, engolida com mais um gole de cerveja. Não há excessos; há precisão. Tudo espremido. Tudo ainda mais avassalador.

“Este é o exercício mais difícil: manter a calma quando a corrente nos puxa e nos enche os intestinos de substâncias indigestas. Manter-se firme como uma rocha no meio do oceano a tal ponto desgastada que, vista de longe, já não se consegue saber se é um ser morto à deriva ou uma pedra desesperada que luta para respirar.”

A lista de elogios a Boulder é longa, merecida e provavelmente insuficiente. Os excertos são difíceis de eleger. Eva Baltazar é para não perder de vista. E este livro entrou directo para o Top de 2025.


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