sexta-feira, 25 de julho de 2025

«Como amar uma filha» de Hila Blum - Opinião

Hila Blum propõe, em «Como amar uma filha», um romance que mais do que procurar respostas, se dedica a escavar silêncios. A premissa parece simples: uma mãe observa a filha à distância, espreitando-a pela janela de uma casa holandesa, anos depois de terem cortado relações. De a filha, deliberadamente, ter cortado relações com a mãe. No entanto, a execução é densa, fragmentada e inquietante. O que mais sobressai é a forma como a autora disseca o afeto, com repetição, apoiando-se numa estrutura narrativa que desafia o friso cronológico.

"(...) Mediante as fotografias, as famílias constroem a sua crónica em imagens - um álbum portátil que dá testemunho da sua coesão. E depois, sempre que fotografava a Leah, a casa hábil clique da máquina, tinha a impressão de estar a escolher uma versão da realidade entre muitas. Levei anos a livrar-me dessa sensação."

Esta linha temporal frágil e muitas vezes desconcertante, reforça o estado mental de Yoella Linden, a narradora, a mãe, cuja memória é demasiado precisa e obsessiva, parece impor uma versão da realidade entre muitas, tornando a leitura mais claustrofóbica do que envolvente. Não se entende se disseca as memórias para reconstruir e entender o que correu mal ou se apenas para manter vivo todo o seu empenho maternal, como quem põe o nome nas coisas para reivindicá-las. 

É difícil esconder que a sua verdade, é uma verdade temperada pela sua própria perceção, talvez isso dê ao romance um tom quase de thriller psicológico, ainda assim sente-se mais um lado quase imoral que detectivesco: não se busca um culpado, mas sim uma justificação para o cuidado e o amor. "(...) o amor de uma mãe pode ser selvagem e desabrido." E o que encontramos são fronteiras difusas entre maternidade e possessividade, proteção e controlo, amor e luto, adolescência e depressão e uma certa instabilidade mental que salta alto a cerca da obsessão.

"O truque é não mostrar muito interesse pela vida secreta dos nossos filhos, isso eu sabia. (...) E como eu observava a minha filha e a sua família sem eles saberem, estava sujeita a ser testemunha do que não tinha vindo testemunhar: corria o risco do espectador."

A fiabilidade duvidosa de Yoella como narradora é um dos pontos mais inquietantes do livro. A sua versão dos factos é atravessada por digressões literárias, memórias desfocadas e referências culturais que ora enriquecem, ora perturbam a fluidez da leitura. Essas oscilações poderão representar a dissociação da própria Yoella da realidade, a procura de resposta ou talvez apenas o ruído da memória — pequenos gestos e escolhas que, no retrovisor do tempo, se tornaram apenas coisas simples. Gestos do amor quotidiano que ela não sabia como dar à filha quando ainda equacionava como amá-la. 

"Gostaria de saber sobre outras famílias como a nossa (...) sobre os erros que cometem com tanta facilidade e que no entanto estão para além do perdoável. Os contratempos do dia a dia. Os crimes da vontade."

O que o livro não diz é tão importante quanto aquilo que revela, tal como a ausência de uma outra voz narrativa - "a ausência de uma sensação é em si uma sensação, um desvio das faculdades sensoriais" - e esse desvio torna-se num ponto de vista enviesado da mãe espectadora, testemunha e narradora e do seu amor excessivo, que cresce e contamina. «Como amar uma filha»  transforma-se assim num testemunho de solidão que pode nascer mesmo do mais íntimo dos laços… e mesmo com aquele final.


 

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