Tudo o que eu tenho trago comigo.
Ou: Tudo o que é meu trago em mim.
Talvez estas sejam as frases mais passíveis de resumir este livro. Um livro muito pouco passivo, esgaçando o relato histórico e biográfico, surpreendendo pela crueza com que está escrito, transcende a própria história, transcende o homem desprovido de bens, transcende a nossa capacidade de ler sobre tanta miséria, fome, morte e pobreza. Transcende a desumanização de que foram vítimas milhões de pessoas aquando na Segunda Grande Guerra.
Um livro que se faz notar pelo peso que tem, para além do Prémio Nobel, mas antes pelo peso de cada palavra, uma a seguir à outra, cirurgicamente escolhidas e estrategicamente colocadas para nos fazer viajar por tamanha brutalidade como a doença da fome, que se alastra pelo corpo ao mesmo tempo que consome a mente, rendilha as ideias e os sentimentos.
Este livro arrepiou-me tantas vezes que algumas mo fizeram fechar, a dimensão do sofrimento humano é tal, que chega a ser difícil de continuar a ler.
"A Irma Pfeifer jazia no meio, de cara voltada para baixo. A argamassa fazia bolhas (...)A cabeça afundou-se e o barrete flutuou lentamente até ao bordo, como pomba emproada. Com as mordidelas dos piolhos em crosta, a nuca rapada (...) a Irma Pfeifer desceu à terra provavelmente vestida e os mortos não precisam de roupa, quando há vivos a morrer de frio.
Achar pode achar-se muita coisa. Saber é que não."
A frieza das palavras, a rapidez com que as coisas acontecem, os pensamentos duros, nus, crus, cozinhados apenas na dor causada pela fome, são para mim atordoantes e assustadores.
"O anjo da fome deita um olhar à sua balança e diz: "Ainda não estás suficientemente leve..."
E com rapidez, de lábio empinado, comi então todas as cascas de batata enregeladas.
E chega a noite. (...) E todos sobem para a fome...
(...)
Quando a fome aperta mais, falamos da infância e de comida. (...) Umas vezes é o pato recheado à evangélica, outras, o recheado à católica."
Volker Weidermann refere que esta é uma obra que se alimenta do horror, eu acrescentaria que se alimenta antes do poder de gerar horror, numa tal dimensão que nos deixa alerta para o respeito e a humildade com que devemos olhar à história e retirar dela todas as lições que o futuro nos pede. Sei que pode parecer filosófico, mas a guerra é o horror daquilo que uns são capazes de fazer contra os outros, por necessidade, por defesa, por obrigação ou por poder e ilusão. A verdade é que a guerra é um complexo de horrores, de mortes, de atrocidades, cicatrizes que marcam toda uma história mundial.
Já quase no final do livro, no capítulo "a gente vive, vive só uma vez", as primeiras palavras são curtas, concisas e arrepiantes - "a alimentação do corpo permanece até hoje um mistério para mim."
"A minha radical prática de abandono. Preciso muito de proximidade, mas sou incapaz de me entregar. (...) Desde o anjo da fome, não permito que ninguém me tenha."
TAMBÉM LÁ ESTIVE (...) EU FIQUEI LÁ (...) DE LÁ NÃO CONSIGO SAIR