domingo, 11 de agosto de 2024

Amy e Isabelle - Opinião - Opinião

“A vida, delicada como um tecido, podia ser rasgada pelos golpes caprichosos de um momento aleatório e egoísta.”

E a frase não podia ser mais verdadeira e transversal à história das mulheres que encontramos nos livros de Strout e mesmo este sendo o seu primeiro romance já se sente a provocação e o confronto geracional, especialmente no feminino e que povoará a relação mãe-filha em Barton ou até mesmo a forte e acutilante Kitteridge.

Em «Amy e Isabelle» uma insegurança disfarçada e uma certa indiferença, caracterizam filha e mãe, respectivamente e a conturbada relação entre ambas que de forma tentacular ultrapassa as fronteiras do doméstico, seja por estarem integradas numa comunidade próxima, seja porque a dada altura trabalham juntas. Ainda assim, a hostilidade aumenta entre as duas, depois do ambiente ficar envolto em mistério e segredos, transformando a atitude de cada uma, embora o início da idade adulta faça mais estragos que qualquer outro evento.

“O verdadeiro problema, claro, era que ela e a mãe passavam o dia todo juntas. Amy tinha a sensação de que as ligava uma linha negra, uma linha não maior do que um risco feito a lápis, talvez, mas, ainda assim, uma linha omnipresente.”

E essa linha nunca se apaga em todo o livro, tal como uma outra que une as mulheres do escritório, reforçando que quando é preciso são aliadas umas das outras, mostrando uma análise muito interessante por parte de Strout sobre os ambientes por onde o mulherio prolifera.

“Não deixava de ser verdade que as mulheres mexericavam umas sobre as outras, mas Amy era demasiado jovem para compreender que os laços quase familiares que as uniam se estendiam à sua mãe. (…) Partilhada por duas mulheres que se conhecem há muitos anos, que apreciam as familiares expressões uma da outra, veem nisso um conforto e uma alegria, e que sabem que, finda a gargalhada entre as ocasionais risadinhas que ainda ocorrem e os lenços levados aos olhos para os enxugar, resta um afeto que as une, a crença de que, afinal de contas, não estamos assim tão sozinhos.”

A lucidez na escrita da autora e a compreensão das relações, vem desde cedo e este romance é a prova disso, embora lhe falte ainda a segurança da sua escrita breve, concisa e até crua que diz tudo o que é preciso, às vezes quase chocando o leitor de tão certeira que é, revelando tanto das personagens como de nós mesmos.

“A sua vida seguia inevitavelmente em frente, contudo sentia-se tão radicada ali como um pássaro pousado numa vedação. E um belo dia talvez se viesse a achar sem a vedação sequer, (…) não suportava parar de pensar que a sua vida real decorreria noutro lugar qualquer.”

Esta ideia de que a vida decorre noutro local e se chegarmos a tal local, voltarmos a sentir que a vida continua a decorrer ainda noutro sítio traz uma ansiedade constante às personagens, talvez só com Olive isso não aconteça, ainda assim, em todas estas vidas ansiosas por outro local existe um toque de animação, uma fenda que separa realidades e lhes empresta um ar de promessa. De esperança!

No entanto, a vida é esse tecido frágil, com as linhas emaranhadas e alguns nós, ou seja, estamos ligados uns aos outros e as acções de uns afectam a vida de outros. Às vezes até mesmo só a simples presença.

“(…) a presença física da mãe desapontava-a; os seus olhos pequenos e ansiosos quando entrava, a mão pálida que revoluteava para prender as madeixas de cabelo que haviam escapado ao puxo fatigado. Amy tinha dificuldade em fazer corresponder a essa mulher a mãe cuja falta acabara de sentir. Culpada, corria por vezes o risco de se mostrar demasiado solícita. «Essa blusa fica-te mesmo bem, mãe», diria, e estremecia por dentro…”

O livro tem momentos muito bons sobre a tensão sentida entre mãe e filha e outros muito enternecedores sobre como as mulheres se vão entendendo entre silêncios, risadas e as lancheiras com o almoço. E que todas, tendo filhos ou não têm as suas mágoas, as suas conquistas e claro, os seus medos, mas também as suas certezas, pois mesmo na corda bamba que é cuidar de alguém há momentos decisivos, num misto de redenção, humilhação e crescimento.

“Pensou no que Amy lhe lançara na cara há umas semanas: «Não sabes como é o mundo.» Era uma acusação que podia ter feito à sua própria mãe. (Salvo que não o teria feito por causa daquela pedra macia e pesada chamada medo).
O facto de Amy ter dito aquilo mudou tudo. Para Isabelle, mudou tudo. Ao recordar o episódio semanas mais tarde, na suave escuridão da noite, sentiu com a mesma intensidade a dor que lhe irradiara pelo peito, como quando ouviu a tirada da filha pela primeira vez; sentiu que cambaleava, embora estivesse imóvel, e o coração palpitava a uma velocidade absurda.”

A consciência desse fosso, e do que o motiva, oferece a Isabelle uma nova perspectiva sobre a vida com a filha que se faz adulta e palmilha o seu caminho e nessa tomada de consciência desperta um conhecimento sobre si mesma e uma aceitação que é apaziguadora. E isso é metáfora de tanto e abre tantas possibilidades que talvez seja a melhor parte de todo o livro. Isso e uma piscadela de olho aos leitores: “(…) talvez entretanto não voltasse a ler outro livro, pois a vida já era difícil o suficiente sem acrescentarmos asa aflições de outras pessoas às nossas.” ;)


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