terça-feira, 29 de julho de 2025

TEORIA KING KONG de Virginie Despentes :: Opinião


“Se a mulher apenas existisse, de facto, na ficção escrita pelos homens, surgiria na imaginação como um ser da máxima importância; muito versátil; heróica e mesquinha; maravilhosa e sórdida; infinitamente bela e terrivelmente medonha; tão importante como um homem e segundo alguns ainda mais. Contudo, está é a mulher como aparece na ficção. A verdade é que, tal como o professor Trevelyan acentua, a mulher era fechada à chave, espancada e torturada.”

VIRGINIA WOOLF, Um quarto que seja seu

Não obstante a qualidade da escrita de Virginie Despentes, faz todo o sentido destacar as palavras de Virginia Woolf, já que esta dualidade percorre toda a Teoria King Kong: é bonita e guerreira a mulher da ficção, mas quando a realidade bate à porta e essa mulher é feia, abrutalhada, gosta de sexo e não tem vergonha de o dizer, tem opiniões, fala alto e esbraceja, trabalha e paga as suas contas e ainda se afirma mulher, filha, mãe, amiga e caga d’alto nas palavras dos outros, que a definem como louca, destravada, malfodida, machona ou histérica… Pois é, o enredo já é outro, não se sabe se a beleza justifica e o perfil guerreiro é remetido para o da mulher-ficção. Mas essa não existe, todas as outras existem, sempre existiram e vão continuar a existir. E algumas falam ainda mais alto e escrevem coisas como Despentes escreveu. Escreve!

“Nós somos do sexo do medo, da humilhação, o sexo alheio. É sobre essa exclusão do nosso corpo que se constroem as virilidades; é nesses momentos que se tece a sua famosa solidariedade masculina. Um pacto que assenta na nossa inferioridade. (…) A prova é que, se realmente não quiséssemos ser violadas, teríamos preferido morrer, ou teríamos conseguido matá-los. Aquelas a quem isso acontece, do ponto de vista dos agressores – eles lá se arranjam, de uma maneira ou de outra, para acreditar nisso -, desde que escapem com vida é porque o ocorrido não lhes desagradou assim tanto.”

O corpo, a sexualidade, a violação e a pornografia são mais que temas neste Teoria King Kong, são pilares-base para olharmos a sociedade. São pontos de vista acutilantes e com as arestas bem afiadas, deixando hipocrisias e subterfúgios de lado. A análise de Despentes vai da literatura à política, da 7ª arte à imigração, da subordinação económica e social à segregação da prostituição, do consumismo à religião, do manifesto feminista à maternidade, família e religião até à morte da fada do lar.

“É esta a condição feminina, a sua cartilha. Sempre culpadas do que nos fazem. Seres considerados responsáveis pelo desejo que suscitam. A violação é um programa político preciso: esqueleto do capitalismo, é a representação crua e directa do exercício do poder. Designa um dominante e organiza as leis do jogo de modo a permitir-lhe exercer o seu poder sem restrições. Roubar, arrancar, extorquir, impor, que a sua vontade se cumpra sem entraves e que ele desfrute da sua brutalidade, sem que a parte adversa possa manifestar resistência. Desfrute da anulação do outro, da sua palavra, da sua vontade, da sua integridade. A violação é a guerra civil, a organização política pela qual um sexo declara ao outro: assumo todos os direitos sobre ti, obrigo-te a sentires-te inferior, culpada, aviltada.

A violação é apanágio do homem. A única coisa de que as mulheres nunca – até agora –se apropriaram não foi da guerra, da caça, do desejo cru, da violência nem da barbárie, mas da violação. A mística masculina deve ser construída como intrinsecamente perigosa (…) A violação, o acto condenado de que não se deve falar, sintetiza um conjunto de crenças fundamentais envolvendo a virilidade.”

Despentes não tem medo das palavras e vai mais longe: violação, virilidade, poder, sedução, economia, pornografia, mediatismo e poder político, tudo se une pela mesma cola, a da hipocrisia.

“A parte promocional do meu ofício de escritora mediatizada sempre me impressionou pelas suas semelhanças com o acto da prostituição. Salvo quando dizermos, «sou puta», termos todos os salvadores do nosso lado, enquanto se dissermos «apareço na televisão» termos os invejosos contra nós. Mas o sentimento de não pertencermos completamente a nós próprios, de vendermos o que é íntimo, de mostrar o que é privado, é exactamente o mesmo.”

“A pornografia é o sexo encenado, cerimonial. Ora, por um truque de prestidigitação conceptual que continua a ser obscuro, o que é bom para alguns, a que aqui chamamos de libertinagem, constituiria para as massas um perigo de que era absolutamente necessário protegê-las.”

Podemos não concordar ou achar exagerado, podemos nem nunca ter olhado aquilo com aqueles olhos, podemos ficar chocados, mas dificilmente ficamos indiferentes ao que aqui é exposto. E o que Virginie faz é isso, ela expões, mais do que só escrever algo. Ela escolhe as palavras certas e o momento adequado para dizer o que diz, por isso mesmo expõe e denuncia, fazendo-nos pensar e repensar conclusões deslocadas.

“Para um homem, não gostar das mulheres é uma atitude. Para uma mulher, não gostar dos homens é uma patologia. (…) Veja-se as reacções quando dizemos alguma coisa (…) todos os golpes são permitidos, a começar pelos mais baixos- Nem sequer somos estrangeiras, mas estamos sempre a ser legendadas porque não sabemos o que temos para dizer. Ou pelo menos não tão bem como os machos dominantes…

Tão interessante quanto esta narrativa, suas ideias e contradições, é ver como a autora aplica isso no âmbito do romance com a trilogia de Vernon Subutex; habilmente construída com inúmeras personagens, capazes de dar voz a muitas destas preocupações king kongíanas 😉 sem esquecer a radiografia social e política com a banda sonora a marcar o friso cronológico.

A ler: Gail Pheterson; O pavilhão das crianças loucas de Valerie Valére; Camille Paglia e Josée Dayan


sexta-feira, 25 de julho de 2025

«Como amar uma filha» de Hila Blum - Opinião

Hila Blum propõe, em «Como amar uma filha», um romance que mais do que procurar respostas, se dedica a escavar silêncios. A premissa parece simples: uma mãe observa a filha à distância, espreitando-a pela janela de uma casa holandesa, anos depois de terem cortado relações. De a filha, deliberadamente, ter cortado relações com a mãe. No entanto, a execução é densa, fragmentada e inquietante. O que mais sobressai é a forma como a autora disseca o afeto, com repetição, apoiando-se numa estrutura narrativa que desafia o friso cronológico.

"(...) Mediante as fotografias, as famílias constroem a sua crónica em imagens - um álbum portátil que dá testemunho da sua coesão. E depois, sempre que fotografava a Leah, a casa hábil clique da máquina, tinha a impressão de estar a escolher uma versão da realidade entre muitas. Levei anos a livrar-me dessa sensação."

Esta linha temporal frágil e muitas vezes desconcertante, reforça o estado mental de Yoella Linden, a narradora, a mãe, cuja memória é demasiado precisa e obsessiva, parece impor uma versão da realidade entre muitas, tornando a leitura mais claustrofóbica do que envolvente. Não se entende se disseca as memórias para reconstruir e entender o que correu mal ou se apenas para manter vivo todo o seu empenho maternal, como quem põe o nome nas coisas para reivindicá-las.