sexta-feira, 22 de julho de 2016

«Eu sou a árvore» de Possidónio Cachapa :: Opinião


Quando assistimos ao lançamento de um livro ficamos logo um pouquinho mais ligados a ele, certo?
Vimos de lá de livro na mão, na maioria das vezes, e somos incapazes de não espreitar como começa.
Este começa assim:

"Nenhum de nós sabe o que sente Hyperion entre as árvores de Redwood. Ou o que avista esta sequóia gigante ao sobrancear o resto da floresta (...)
O que sente a mais alta das plantas, Hyperion, a que não vai a lugar nenhum?
Sonhará a árvore com o som dos seus membros a quebrar, com a dor gigante de quem cai de uma descomunal altura, com a vibração dolorosa das coisas que se partem, a vir desde as raízes mais fundas até à última das folhas?"

Não é com Hyperion que seguimos por esta floresta dentro. Seguimos antes o rasto de Samuel, também ele do alto da sua solidão, da sua dor que se agiganta com o passar dos anos. A vibração sentimo-la pela escrita muito próxima e real de Possidónio Cachapa que consegue abarcar com uma árvore só, e os seus ramos, muitas das ramificações da vida.

"As árvores sabem uma coisa que os homens negam. Que um segredo sobre o fim de tudo é, na verdade, apenas o começa de outra coisa qualquer.
(...) da forma como confundiam o tamanho das suas sombras com a dos próprios corpos.
(...)
Concluíam que os homens ora se vêem sementes muito ao fundo da terra ora carvalhos milenares acima da florestas."

É nesta oscilação entre sementes e carvalhos milenares que vamos encontrando personagens como Jude e Samuel ou os seus três filhos, Laura, Esperanto e Vitória, mas também ao inspector Casaca (que sem o inspector atrás não tem a postura de uma árvore) e a Marcelino. E isto sem esquecer de Mário ou das famílias que alimentaram silêncios e condicionaram futuros.

"Numa altura em que o mundo era muito diferente. Onde se achava que o futuro seria algo mais do que uma parede espessa que os impediria de chegar a qualquer lado.
(...)
O silêncio tem, entre os medíocres, a fantástica virtude de permitir falar por cima."

É difícil falar sobre este livro sem revelar detalhes da história de Samuel, mas revejo nele algumas das preocupações com a família, recordando-me o «Materna Doçura». Quando o li, salientei a escrita devoradora. E aqui, isso repete-se. Há uma energia devoradora nos enredos que Cachapa constrói. Uma preocupação constante com o amor e com a necessidade de sermos benévolos e carinhosos. Estando a redenção maior no amor aos outros. Voltando assim ao amor de sangue, o amor aos nossos.

"(...) tomar conta dos outros, às vezes temos de parar, abrir-lhes apenas os braços e ficar ali, sem fazer nada. (...) Rir com eles. Ser amado e amar. Só isso. Ou não deixar que a necessidade de abrir o ventre da terra, ciclicamente, se torne uma obsessão. O vício que tudo cega. A terra dá e a terra tira. Porque a terra espera também o dia em que será vencedora sobre o corpo físico do homem. Nela entrará a sua carne ou pousarão as suas cinzas."

Neste «Eu sou a árvore» há a presença constante da morte. A morte nas mais variadas formas. E talvez esse peso esteja cá para lembrar o quão frágil e efémera pode ser a vida quando abandonada apenas à brutalidade do destino, misturado aqui com a ruralidade com que se cruzaram estas vidas.

"E Samuel, com o coração cheio, esqueceu-se de que nunca antes as tinha visto, muito menos tocado um daqueles troncos rugosos, um ramo um pouco mais velho do que ele próprio e que parecia comunicar consigo.
(...)
Samuel tirou as mãos dos bolsos e viu que estavam brancas e duras. Mãos-montanhas, prontas para lutar amorosamente com a dureza da terra. E assim foi."

*
Um livro COMPANHIA DAS LETRAS | Pengin Random House

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