Em 1953 o livro de Ray Bradbury foi publicado como um manifesto contra a censura e traçava um cenário diabólico, que à época parecia absurdo. Era afinal um aviso. O seu tom era premonitório e hoje choca pela semelhança com a realidade que temos, numa sociedade tão virada para os ecrãs e em constante estupidificação.
O alerta era para a massificação da televisão e que as pessoas não estavam a perceber o quanto isso as tornava imbecis e desinteressadas do que realmente as rodeava. E pior é ver que mais de cinquenta anos depois a massificação continua e o cidadão vai empalidecendo atrás dos diversos tipos de ecrãs.
No entanto, «Fahrenheit 451» é, acima de tudo, uma saga, uma viagem de redenção. Há uma reviravolta e uma conversão que ainda é possível: "vagabundos por fora e bibliotecas por dentro".
Da fogueira até aos homens-livro, conhecemos a reviravolta na cabeça de Montag, o bombeiro que incendeia livros: essas ameaças de luz aos cidadãos cinzentos, viciados em ecrãs e comprimidos.
O prazer com que Montag exercia a sua profissão/missão é assustadora e percebe-se que é uma referência ligada ao passado recente de uma Europa entregue aos totalitarismos. A critica social é feroz e um espelho do que tem vindo a acontecer até aos dias de hoje:
"Depois, o cinema no início do século XX. A rádio. A televisão. As coisas começaram a ser em massa.
Montag permaneceu sentado, imóvel.
- E porque possuíam massa, tornaram-se mais simples. Outrora, os livros atraíram algumas pessoas, aqui e ali, um pouco por todo o lado. Pessoas que podiam dar-se ao luxo de serem diferentes. Havia espaço para isso no mundo. Mas depois o mundo encheu-se de olhos, de cotovelos e de bocas. A população duplicou, triplicou. Os filmes e a rádio, as revistas, os livros foram ficando todos ao mesmo nível, uma espécie de pudim pastoso (...)
- (...) Os livros ficam mais curtos. Condensações. Resumos. Tabloides. Tudo se orienta para a piada, o fim abrupto.
(...) Tudo digerido, resumido, digerido-resumido. Política? Uma coluna, duas frases, um título! E depois, tudo desaparece! A mente dos homens anda a tal velocidade neste carrossel movido pelas mãos dos editores, exploradores e radiodifusores que, nesse movimento centrífugo, se perde tudo o que seja pensamento, considerado desnecessário, uma perda de tempo!"
Até nesta digestão acelerada e ao sabor de interesses comerciais, este livro se aproxima dos dias de hoje. Cada avanço na narrativa quer chamar à atenção para o poder dos livros e da necessidade de abandonar a máscara social e a vida ao sabor de modas e tendências. Se actualmente "ser diferente" está na moda, a pergunta que fica é se essa diferença é genuína ou simplesmente provocada para uma integração no modelo ditado pelas maiorias.
«Fahrenheit 451» é um grito contra o status quo, é um abanão, abana a árvore e deita abaixo essa preguiça... a preguiça de questionar, de pensar. A sociedade distópica aqui relatada não questiona, não tem curiosidades, todos são egoístas e niilistas, aborrecidos e irresponsáveis. Controlam a raiva através de divertimentos tão bizarros e impunes como ir atropelar pessoas. Os livros aqui são símbolos para o livre pensamento, através do acto de ler, pensar, questionar e em última estância, criar e evoluir.
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