«Cronovelemas" ou crono-novelemas, como eu insisti em lhe chamar, integra duas novelas: "A Arte de Morrer Longe" e "Quando o Diabo Reza", unidas agora sobre este neologismo ou cruzadas aqui, visto a sina da escrita também ser sistematicamente traída pelos caprichos da realidade.
"Quando o Diabo Reza" traz-nos dois artistas daqueles com quem já todos nós nos cruzámos numa esquina de Lisboa ou ao balcão baço de um tasco a beber uma mini. Estes artistas, Bartlo & Abreu, o uso do "e" comercial é propositado, se bem que é um negócio condenado ao insucesso, por um lado devido às perlengas vagas e repetitivas de um e, às estratégias e ideias já gastas, de outro.
No entanto, a congeminação é feita muito ao jeito típico e comunicativo de Mário de Carvalho que conquista o leitor a cada palavra, o enreda a cada linha e o embrenha em parágrafos cheios de rasgo.
"Mas Abreu optou pela serenidade desprendida, naquele jeito de boca descaída, de infinito desprezo pelo mundo, sem pachorra para atender Bartlo e os outros mangas que estavam ali a fazer-lhe confusão, enquanto ele se concentrava. Ficar-lhe-ia bem um cigarro ao canto do beiço, o olho meio fechado por causa da linha do fumo (...)"
"Mas Abreu não convenceu ninguém. Acabou por confessar, meio envergonhado:
- Sempre tens mais presença, pá. E faladura.
A ele entravava-se-lhe a voz sempre que acelerava o pensamento. No fundo, invejava aquele desembaraço com que Batlo, em abancando, estendia as pernas, levantava a mão a meia altura e vá de palavrear e enfiar histórias, magnetizando quem estiver em volta. Não era grande cabeça para meditar, mas tinha uma boca de ouro para a palradeira."
"A Arte de Morrer Longe" é um hilariante relato do que pode ser uma discussão sem fim à vista, perdida nos pântanos sombrios em que se tornam certos casamentos. Vagamente desdenhoso, mas carregado de humor negro, a novela traça uma crítica feroz a certas dinâmicas românticas. E, como foi lido depois de "Quando o diabo reza" parece que estava a encontrar os tais policias com pouco treino no diálogo, já que aqui, os encontros com a policia dão todo um outro desenlace a esta arte de (fazer) morrer longe e dão um outro significado à célebre frase: «o escuro tem vida própria».
Sobre a saga da tartatura nada direi, para permitir ao futuro leitor todas as risadas que este trio lhe proporcionará.
"Nas nossas ruas, ao anoitecer, há tal soturnidade, há tal melancolia, e no século XXI, Cesário amigo, pouca é a melhoria. As municipalidades poupam nos gastos de iluminação, porque interiorizam que os habitantes já chegam à noite muito fartos da célebre luz de Lisboa e precisam de descansar os olhos e os sentidos.
E, se assim é nas praças históricas, como o Rossio, com grande profusão de sombras, e nos antigos bairros que tomam trevas de floresta negra, então mais se enegrece o ambiente quando se trata de alumiar plantas, relvados, bichos, espaços vazios e águas largas (...)
Por tudo isto, não é fácil abandonar uma tartaruga no lago do Campo Grande (...) atolando os pés em torrões de terra, fazendo rechinar a relva, criando em torno de si um halo de crepitações capazes de despertar qualquer tigre dente-de-sabre à solta."