«Dentro da pequena caixa iluminada que é a loja, sinto a manhã fluir com normalidade. Do lado de fora dos vidros reluzentes e sem uma única dedada, vejo as pessoas caminharem apressadas. Mais um dia que começa. É esta a hora a que o mundo acorda e todas as suas engrenagens se põem a girar. Também eu estou em movimento, como uma dessas engrenagens. Sou uma peça no mecanismo do mundo (...).
Naquele momento, e pela primeira vez, eu fazia parte da humanidade. Acabo de nascer, pensei. Aquele dia marcou sem dúvida o meu começo como peça do mecanismo do mundo."
Keiko Kurukura é uma peça na engrenagem do mundo do trabalho, mas mais do que isso é, no seu entendimento, o trabalho que define e convenciona toda a sua existência. No manual de funcionamento e de regras de atendimento da loja de conveniência ela descobriu um manual para a vida. Entre stocks de ramen e oniguiris, umas quantas vénias e muitos Irasshaimasê, Keiko vai-se definindo como pessoa, seja na tentativa de estabelecer amizades, seja no corresponder ao que é socialmente aceite e pedido às mulheres. No entanto, a loja de conveniência não é um local conveniente para se continuar década após década a trabalhar. Que tipo de vida ira Keiko conseguir? Que homem quererá casar com ela? Estas perguntam não atormentam Keiko, mas são motivo de conversa entre conhecidos e familiares, que a analisam e criticam directamente na sua cara, mostrando-lhe que não corresponde ao padrão de sociedade para uma mulher japonesa da sua idade.
"Os olhos de quem despreza uma coisa são particularmente fascinantes. Às vezes escondem o medo de ouvir argumentos contrários. Outras, trazem o brilho agressivo de quem desafia (...). Noutros casos, quando o desprezo é inconsciente, os globos oculares parecem cobertos por uma película, envoltos no prazer extasiante que o sentimento de superioridade provoca nas pessoas."
São estas breves análises que conferem transversalidade ao texto de Murata. Ela não retrata só a sociedade japonesa ou o mundo do trabalho nipónico. Como também não caracteriza só o socialmente aceitável para as mulheres lá do outro lado do globo. Não, nada disso. Murata consegue em poucas linhas e por vezes num tom quase adolescente caracterizar o mundo e a forma ancestral como ainda se olham certas situações. E prova ainda, que a normalidade ou o ser-se ajustado à realidade são coisas tão difíceis de definir quanto cada individuo per si.
"O padrão do mundo é rígido e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. O seres humanos fora do padrão acabam por ser ajustados e corrigidos.
Esse é o motivo que me faz pensar que preciso de me curar. Se não o fizer, serei dispensada pelas pessoas normais..."
O mais interesse de todo o livro é fazer-nos pensar precisamente no que são pessoas normais ou no que é aceite como normalidade.
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