Em «A despedida de José Alemparte» perdemo-nos inicialmente no trio de vozes que narram episódios despegados e que confundem o leitor, deixando-o sem saber quem é quem e do que fala. À medida que a narrativa cresce, as tensões são muitas e a urgência da despedida ganha sentido, é que José tem Alzheimer e tem por resolver um passado doloroso que já se vai esfumando da sua memória.
A guerra e a ditadura, a descoberta da doença, mas também a família e o passado, abrem feridas que sangram uma vida inteira e talham o carácter das personagens que Paulo Bandeira Faria habilmente criou nesta espécie de diário. Dividido em três partes: Sinais. Forças e Maravilhas cruzam-se várias vidas ocupadas em dar voltas a um passado que, inevitavelmente, terá de juntar as pontas num presente prestes a se finar.
"Fiquei só. Recordei um diálogo que uma vez tive com Xosé. O nosso destino não nos pertence, pedimo-lo emprestado, disse-lhe, e ele, apesar de descrente desde o dia em que rezou por um milagre que não ocorreu, perguntou: a quem? A Deus? Respondi: não: aos outros."
Os outros têm aqui um peso e um tamanho enorme, os outros são um país e a sua História, a guerra civil ou os atentados terroristas bascos, a crise económica europeia, o desemprego, o governo e os outros na esfera familiar, os que perdemos e os que ainda temos. E é aqui que conhecemos Emma, Alex, Daniel, Marta, Maria e Matilde, bem como Xosé, o amigo desavindo de José Alemparte.
"(...) Sabes o que eu e a minha mãe ouvimos quando carregávamos o meu pai e ninguém nos ajudava? Um falangista passou e disse: pesa não pesa? É que leva muito chumbo dentro! E desatou a rir enquanto eu chorava. Velámo-lo em casa e ninguém pôs lá os pés, tinham medo, parecíamos uns leprosos. A minha mãe nunca mais tirou o luto (...)"
A história dos Josés tem o seu impacto e partilha os alicerces da passado recente da própria Espanha, tocaram-me mais os episódios de quando se cruzam com a guerra, do que o amor por uma mulher que os separou; mas o quotidiano até certo ponto banal de Emma e Daniel revela um passado ainda mais próximo sobre a incomunicabilidade que silencia muitas famílias e lhes rebenta os laços e os afectos, fruto de um modelo de mundo que pula e avança com um apetite voraz e tantas vezes sem sentido.
"(...) Até os beijos já não são beijos, mas bjs. Entre nós já não há o calor das vogais, só a cortante transcrição das consoantes, já reparaste? Apenas passamos informações."
Há ainda outro lado da voracidade, a da urgência do crescer e do perguntar e aí surge Alex, um narrador com uma visão muito peculiar e que quebra alguma tensão que a narrativa carrega, revelando-nos por vezes os tais detalhes que permitem compor os outros lados do enredo.
"Eu também gosto de rir. Quando nos rimos usamos muitos músculos da cara. É por isso que me rio tanto. Os adultos riem pouco e ficam com pouca ginástica na cara. Eu disse isso ao meu avô e ele disse que eu tinha razão (...) perguntei: porquê? E ele disse: porque a seriedade da cara nos vem do coração.
Eu não entendi (...)"
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