quinta-feira, 15 de setembro de 2022

“O meu nome era Eileen” de Ottessa Moshfegh :: Opinião


"(...) raramente sorria. Quando sorria, fazia um enorme esforço para impedir que o meu lábio de cima subisse, tarefa que exigia uma grande austeridade, consciência e autodomínio. Nem dá para acreditar no tempo que passei a disciplinar aquele lábio. Sentia deveras que o interior da minha boca era uma parte íntima, saliências e reentrâncias de carne húmida separada, por isso, deixar que alguém o visse era algo tão mau como abrir as pernas."

Otessa Moshfegh conseguiu redesenhar os contornos da solidão. Uma solidão bem afiada, decadente, sórdida e profundamente sombria e dentro dela está Eileen. 
Eileen Dunlop é protagonista e narradora deste enredo sufocante e caótico, para o qual é impossível não nos sentirmos puxados tal é o fascínio (e também alguma repulsa) por esta personagem de mente fantasiosa e rebuscada, dona de atitudes bruscas e arrogantes, mas também contida, púdica, perdida. 

Eileen é um misto de invisibilidade com lança-chamas, embora muito do que aconteça se passe só na sua cabeça, é na forma como o revela que se desnuda, seja com sensibilidade e atenção ao detalhe, seja na total crueza e fúria. Uma fúria reprimida.

"(...) quando a minha mãe faleceu, passou a beber gim. A melhor explicação que consigo encontrar é que talvez o gim lhe fizesse lembrar o perfume dela - ela usava uma eau de toilette forte, floral, mas acre, de marca Adelaide - e que talvez absorver a fragância da morte de algum modo o apaziguasse. Ou talvez não. Ouvi dizer que um trago de gim nos torna imunes aos mosquitos e a outras pragas. Por isso, talvez ele o bebesse tendo essa lógica por base."

Também Eileen tinha uma lógica semelhante. Engolia remorsos enquanto se empanturrava de gelado, misturando tudo com álcool e comprimidos, alimentando ideias tóxicas que lhe consumiam o corpo. Quando atingia o limite, expelia tudo a toque de laxantes, celebrando o festim de excrementos e as manifestações corporais que tanto a fascinavam.

"Eu parecia extremamente fastidiosa, insípida, apática e impassível, mas na verdade estava sempre furiosa, violenta, com os pensamentos em rodopio, a mente como a de um assassino. (...) Eu gostava de livros sobre coisas tenebrosas, tais como assassínios, doenças e morte (...) para estudar a macabra prática de extrair o cérebro dos defuntos pelo nariz como se fossem meadas de lã. Gostava de pensar no meu cérebro desse modo, emaranhado dentro do meu crânio. A ideia de que o meu cérebro podia ser desemaranhado, endireitado e, desse modo, refeito num estado de paz e sanidade, era uma fantasia reconfortante."

"O meu nome é Eileen" é um relato inteligente, obscuro e bastante equilibrado no quanto brinda o leitor com momentos de elogio e de delírio (e também com momentos desagradáveis) mostrando como uma família disfuncional pode danificar a imagem que uma criança tem de si e do mundo, mas mais ainda, é um relato sobre o mundo interior, a psique e o que ela não revela na convivência do dia-a-dia. 

"Por muito desprezíveis que fosse, as minhas colegas de trabalho não ocupavam um lugar cimeiro na lista de pessoas abjectas que fizeram parte da minha vida (...) As minhas colegas eram por demais taciturnas, insípidas e afectadas (...).
Consigo ainda recordar as imagens mentais que eu fazia delas em posições sexuais, as caras enfiadas nas partes pudendas uma da outra, contorcendo os narizes por causa do cheiro enquanto esticavam as línguas.
As minhas suspeitas em relação às minhas colegas de escritório não eram necessariamente depreciativas. Ajudavam-me a nutrir alguma compaixão..."

O desajuste, a indiferença, a falsa responsabilização ou culpa e a maledicência, juntamente com uma solidão profunda alimentaram em Eileen um fardo pesado e o uso constante da uma máscara fúnebre, mas mesmo assim, denunciadamente triste e só, Eileen era invisível.
E o manto da invisibilidade não era um crime seu. Cresceu com ela, enquanto desabrochava espicaçada e ridicularizada, numa infância descarnada de qualquer carinho, atenção ou sequer a lancheira preparada.

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Leia mais sobre este livro no artigo de Gonçalo Correia/Observador por ocasião do Festival Literário da Madeira (2018) com a presença da autora.