sábado, 13 de maio de 2023

"O alegre canto da perdiz" de Paulina Chiziane - Opinião

 

“Um grito coletivo. Um refrão”

Eu acrescentaria, uma litania, uma ladainha que no seu tom poético pretende converter a dureza de temas tão vastos e intermináveis como o racismo, a colonização, a guerra, a violência e a violação; a liberdade versus a assimilação e a traição, o jugo da opressão, da guerra de raças e de sexos (e a da religião) - a escravatura - os conflitos interiores e a luta desmesurada pela sobrevivência, num misto complexo e contraditório de sofrimento e destruição, sem esquecer a que é autoinfligida. E ainda há lugar para narrar a Mulher, essa raiz mais profunda e extensa de África, o seu corpo, o seu papel, a sua sexualidade, toda a sua complexidade e sofrimento.

“Quantas forças uma mulher deve ter para carregar a tortura, a ansiedade e a esperança, quantas palavras terá a oração da eterna clemência a um deus desconhecido, cuja resposta jamais virá?”

Quantas forças um escritor deve ter para narrar as dores de uma terra que o viu nascer?

E quantas forças mais terá que ter sendo mulher que quis encontrar as palavras que são chuva fresca e têm “o poder das ondas mansas embalando as embarcações na valsa da brisa”.

Desengane-se o leitor, «O alegre canto da perdiz» nem sempre é alegre e nem sempre é fluído como uma valsa. O batuque por vezes impõe-se, caótico e na tensão de cada batida há uma subversão que quer romper a noite, rasgar quem derruba a esperança que às vezes já não vem com cada nascer de cada dia.

Por isso, as mulheres e os homens que aqui encontramos seguem de sorriso aberto e o peito fechado, muitas vezes “frustrados como abelhas embatendo nas vidraças frias de uma janela” porque “há parcelas do organismo que não se alimentam de arroz, nem de remédios ou palavras divinas” precisam de sonhos realizados e não de miragens. Ainda assim, o ingrediente que mais abunda é o da complexidade contraditória que habita todo o ser humano, balanças ao vento, aguardando a acalmia.

“Nas cidades humanas a liberdade é proibida. O ser humano tem que andar sempre vestido, documentado, calçado. Por andar sem rumo, a polícia prende por vadiagem, como se alguém conhecesse de facto o rumo de cada passo. Por que é que tem de se andar num rumo exacto se todos os lugares são lugares para andar?”

E caminhando até ao final do livro, lê-se nas entrelinhas a mensagem de esperança, acreditando numa humanidade capaz de se reinventar, já purgada de que ainda reste por denunciar e perdoar.


sábado, 6 de maio de 2023

«A Ofensa» de Ricardo Menendez Sálmon :: Opinião

“A morte é a condição real que ofende a fantasia.” Harold Brodkey, The Runaway Soul

Uma alma que foge à morte, nas suas mais variadas formas, pode ser o resumo deste «A Ofensa» que valeu a Menendez Sálmon as luzes da ribalta da ficção espanhola nos idos de 2007.

“O heroísmo foi inventado para os que carecem de futuro e melhor não podia ser introduzido o homem deste relato, Kurt. Um homem em transformação desde o primeiro momento. Em homem em fuga.

“(…) Kurt abraçou Rachel durante longos, suados e comovedores minutos em que ambos conjugaram os dois verbos mais antigos que homens e mulheres reiteram na intimidade: amar e temer.” 

“O mundo era um teatro de exaltações e de ruído envolto no grato celofane da velocidade, da exactidão, da mecânica da sedução.”

A guerra estava à porta e os homens montavam insólitos cavalos mecânicos, seduzidos pela potência que resfolegava campo afora, parecendo imunes aos corpos horrivelmente mutilados, corpos que outrora contracenavam em abraços e despedidas, promessas e desejos e agora não passavam de escombros.

“Ao fim e ao cabo, até a filosofia mais trivial ensina que a vida se parece mais com um quadro de Bosch do que com um bucólico almoço na relva.”

É esse quadro de Bosch que encontramos numa linguagem acelerada que introduz e resume manobras de guerra e artilharia, posições e detalhes geográficos, mas que embate em pequenas coisas, réstias de luminosidade (ou humanismo?) que comprometem a engrenagem de virilidade, posse e sentimento de violação infinita.

“(…) todo aquele estrondo não fez mais do que atirar baforadas de frio sobre o seu peito e extremidades, de modo que receou não conseguir dar um passo sem desabar como um boneco de neve.”

Não obstante, o lirismo enternecedor não suplanta a estranha dignidade que os homens em guerra precisam de manter, um sentido que parece não ter local de inversão e os faz esquecer os seus e a sua própria língua. Os faz esquecer de si, do seu corpo naquele combate sem fronteiras para a desumanização.

Será esse esquecimento uma forma de desmaio? Uma forma de viver sem estar realmente naquela realidade da guerra?