«O Relatório de Brodeck» é um inventário da tristeza, da
desumanização, da traição, do medo e da solidão, mas é também um inventário da
beleza, da esperança, da luta e da crença na palavra. Palavra após palavra,
pouco a pouco, o nada ganha conteúdo, dimensão, profundidade, memória. O
Relatório é isso mesmo, um compêndio de pequenos nadas que compõem memórias
fortíssimas (muitas vezes duras de serem lidas), recordações que não se podem
perder, porque cada homem é uma soma de pequenos nadas que justificam tudo!
“Cada homem encontrava-se curvado sobre o seu próprio
silêncio, mesmo havendo quase quarenta pessoas no albergue. Estávamos
comprimidos como hastes de salgueiro num feixe, asfixiando, respirando o cheiro
uns dos outros, os hálitos, os pés, a viscosidade ácida do suor, da, da roupa húmida,
da lã velha e do algodão., sujos da poeira, da floresta, do estrume, da palha,
do vinho e da cerveja, sobretudo do vinho. O que não significa que estivessem
todos embriagados, não, seria demasiado fácil acusar a embriaguez. Apagar-se
iam de uma penada as atrocidades. Demasiado simples. Mesmo, muito simples. Vou
tentar não abreviar o que é muito difícil e complexo. Vou tentar. Não prometo
que consiga.”
E não conseguiu abreviar porque lhe vieram à cabeça, à boca,
às noites e à palavra, os pesadelos a que as atrocidades do campo de
concentração o condenaram. Voltou tudo, envolto naqueles cheiros e sensações,
naquelas ordens que o sentenciaram perante a urgência e a obrigação de relatar.
Relatar para ilibar pela palavra. Pela mesma palavra com que falava para si
mesmo, descrevendo a beleza, igualmente esmagadora e aprisionante, da aldeia e
a Natureza envolvente e só por aí entram alguns raios de luz na narrativa, pois
o O Relatório, esse, é pior que o Inverno da sua aldeia.
“No Inverno que, na nossa Terra, é longo como séculos
espetados uns atrás dos outros, numa grande espada e durante o qual, à nossa
volta, a imensidão do Vale, asfixiado pelas florestas, desenha uma
extravagante. Porta de prisão.”
Nos dias seguintes ao Ereigniës (palavra em dialecto
usada para descrever a noite do evento) nada mais será quente para além dos
ânimos da população, as braseiras ateadas por boatos e as coxas de Boulla, que
é talvez das poucas vezes que nos faz rir, embora todos os habitantes sejam
peculiarmente descritos, como o velho Diodème que Brodeck achava digno das
epopeias e desconfiava ter sido enviado pelos deuses, mas com que intuito?
Entre questões sem resposta e memórias que caem, Brodeck
reaviva o medo, sempre o medo. O medo é personagem deste romance, juntamente
com o mal.
“Sinto que não fui feito para esta vida. O que eu quero
dizer é que a minha vida transborda por todos os lados, que não foi talhada
para um homem como eu, que se enche de muitas coisas, muitos acontecimentos,
muitas misérias, muitas falhas. Talvez a culpa seja minha? Talvez eu não seja
capaz de me revelar um homem? De pegar ou largar, de seleccionar. Ou talvez a
culpa seja deste século em que vivo, e que é uma espécie de grande funil no
qual se vasa a sobra dos dias, tudo o que corta, esfola, esmaga e retalha.
Recordo o meu medo, como se o medo, doravante, fosse uma peça do meu vestuário.
Uma peça que, de resto, nunca consegui despir, muito pelo contrário, e que me
comprime como se me encolhesse de semana em semana. O mais estranho é que,
quando eu estava no campo de concentração, quando me chamava Cão, Brodeck, não
tinha medo. No campo de concentração, o medo não existia. Eu estava para lá do
medo. Porque o medo ainda pertence à vida.”
Brodeck fez parte dessa marcha de cadáveres, regressou de
onde não se regressa e afirma várias vezes que a morte não é difícil, difícil é
tentar sobreviver perante a constante ameaça de morte, a ideia, o foco, a
concentração numa única sensação, a de morrer. E o ser humano não foi talhado
para viver assim. Por isso o Inverno lhe era tão doloroso, memórias como
mancheias de neve entre a roupa e a pela. Um frio cortante que queima.
O Relatório vai continuando e pouco é revelado sobre
o seu verdadeiro alvo, o Outro, o Estrangeiro, O Estranho, O Forasteiro, ou
seja, O Anderer, o homem que foi morto pela população cega de desconfiança,
porque o desconhecido é uma ameaça, mas uma multidão é uma ameaça maior,
especialmente quando confrontada com o boato, a desconfiança ou o que é puro.
Como a pureza dos animais fortemente atacados e usados, embora Brodeck avance e
recue na história e nos faça, ora detestar ora compreender cada uma daquelas
pessoas.
O que é certo, é que a guerra devastou e os seus horrores
não têm fronteira, não precisam de país ou idioma, os traumas têm extensões
mais altas que as montanhas e efeitos mais desconhecidos que as entranhas da
terra, sempre adensados pelo isolamento e a escuridão
“Releio as páginas já escritas da minha narrativa, apercebo-me
de que sigo pelas palavras como um animal acossado, que corre veloz, aos
ziguezagues, procura despistar os cães e os caçadores lançados em sua
perseguição. Há de tudo nesta confusão. Ostento a minha vida. Escrever alivia-me
o coração e o ventre.”
Já o leitor não segue nem sai de coração ou ventre mais
aliviado, antes sim num novelo, mesmo quando Brodeck cruza as suas palavras com
as de Nösel e nos diz, à laia de dúvida ou de esperança que «o homem é um
animal que recomeça sempre», não obstante, afirma que o autor nunca
respondeu sobre o que é que o homem recomeça e o acuse de ter esquecido o
verdadeiro mundo por se ter dedicado aos livros. Mas também ele, Brodeck se
dedicou aos livros, desde cedo pela mão do padre Peiper.
“Alguns devorarão, outros,
esventraram-nos, violaram-nos, conspurcaram-nos. E o que é justo nem sempre
triunfou sobre o que é sujo.
O que me obrigou, como milhares de
outros homens, a carregar uma cruz que não escolhera, a sofrer um calvário que
não fora feito para os meus ombros e que não me dizia respeito?
Quem decidiu, então, remexer a
minha obscura existência, desenterrar a minha parca tranquilidade, o meu
anonimato cinzento, para me lançar como uma bola tresloucada e minúscula para o
meio de um imenso jogo? Deus? Mas então, se Ele existe, se Ele existe
realmente, que se esconda. Que erga as mãos à cabeça e a curve. Talvez, como
dantes nos ensinava Peiper, muitos homens não sejam dignos Dele, mas hoje
também sei que Ele não é digno da maior parte dos homens, e que se a criatura pôde
gerar o horror, foi unicamente porque o seu criador lhe forneceu a receita.”