quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

«Jogos de raiva» de Rodrigo Guedes de Carvalho :: Opinião



Rodrigo Guedes de Carvalho escreve como quem atalha pelo mato. Muitas frases curtas como passos decididos mas que a falta de trilho obriga a recuar e a escolher outro sítio onde pisar. Repetem-se palavras, gestos, passos. Nessas insistências, uns quantos arranhões, dilacerando aqui e ali as pernas com que quer percorrer o resto do caminho. A mata é densa e os obstáculos exigem esforço e persistência. A mente, entregue mais aos pensamentos do que ao que palmilha, avança e reage, conforme o que o terreno pede. E se isto for metáfora suficiente para descrever, pela rama, a escrita do autor, não é suficiente para explicar o tamanho do enredo e das personagens deste livro.

"É tão difícil resistir quando nos elogiam, quando nos querem tudo o que em nós é inteligente e desconfiado se verga por vezes à cauda do pavão."

«Jogos de raiva» fala do mundo inteiro visto da janela jornalística deste externo ocidental, na mesma medida gigantesca que cava fundo um fosso familiar. Raiva, ódio, desenraizamento, memórias ou a incerteza de todas as mudanças e falsidades actuais, são apenas alguns dos grandes motes deste livro; e a forma como esses temas se transformam em sentimentos e nos entram pela casa adentro também. 
O romance expõe um olhar crítico e ácido denunciando como a actualidade afecta e condiciona e claro, molda a vida familiar. Isso tudo sem esquecer a equação complexa que é a vida por si só e o peso do passado. 

"Dividido por secções, para melhor organização do consumidor, o jornalismo só tem verdadeiramente uma área, que engole o mundo inteiro: nós. (...) 
O jornalismo, na verdade, não é realmente necessário para que o mundo gire e progrida, (...) nós viveríamos sem ele. (...) O jornalismo é só um espelho na parede, não é o cimento que sustém a casa. (...) O jornalismo não é água ou comida ou abrigo ou medicamentos. Só existe porque queremos saber do resto de nós. Somos animal de grupo. Queremos espelho e o jornalismo pendura-se à nossa frente."

As reflexões presentes no livro podem ser interpretadas à luz do tema específico ou como metáfora alargada a várias áreas da vida familiar e em sociedade. O tom crítico nunca se perde, bem como a tensão e o enigma em torno da família Sereno: "O problema dos segredos é que não são biodegradáveis. Não desaparecem só porque os amarramos a uma pedra pesada e os lançamos ao rio." 

Também muito presente no livro, são as referências constantes a Virginia Woolf, Oscar Wilde ou Tim Burton, talvez como pedras-de-toque para reforçar a qualidade e o sentido das revelações que conferem reviravoltas na vida das personagens. Ou para aferir a necessidade das obras de artes na nossa vida. Farão falta as pinturas, os livros, a música ou filmes? Fará falta o livro «O Fantoche» que Francisco Sereno irrompe a escrever? 
São essas reviravoltas que podem estar imiscuídas nas brechas que o jornalismo tem e onde esconde meias verdades, ou nas redes sociais, cheias de zonas cinzentas que dificultam a divisão entre o bem e o mal ou na relação entre pai e filho, que discutem como se a vida não fosse finita e o fim não chegasse de forma inesperada.

O inesperado acontece várias vezes ao longo do livro, com pequenos retornos ao passado, precipitando o leitor em conclusões que saberá logo a seguir serem erradas. E esse é um jogo ainda maior que Rodrigo Guedes de Carvalho estabelece com os seus leitores. Joga com perspicácia, aguçando a curiosidade do leitor. No entanto, existe uma passagem, quase logo ao início que espelha muito bem o que o autor engendrou para este livro: "Há uma brutal exigência na psiquiatria e são poucos os que a antevêem quando se decidem pelo ramo. Ser, entre todos, um curador de almas. Vestir uma túnica e abrir os braços. Deixai vir a mim os depressivos, os dementes e esquizofrénicos, os ansiosos e os bipolares. Pretende-se do que resgata almas um primado de razão rodeado por irrazoáveis."

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