terça-feira, 12 de março de 2019

«o escuro que te ilumina» de José Riço Direitinho - opinião


Tenho, necessariamente, de pessoalizar este meu texto sobre o mais recente livro de Riço Direitinho. Sou fã do autor e sigo muitas vezes sugestões de leitura comentadas por ele no Público. Por isso, e por ser fã do fabuloso breviário; só podia correr a comprar e, a ler, este novo livro perante o lançamento tanto alarido se fez. 
No entanto, ao lê-lo fui ficando escurecida com o que me esperava, página atrás de página. O tom encantatório que eu queria reencontrar, apenas me chegava por referências do autor e não pelas suas palavras.
Agora, volvidos mais de seis meses da sua leitura e por motivo deste texto, releio partes, umas ao acaso, outros marcadas e descubro-lhe uns traços que captaram a minha atenção e me puxam para o reler na íntegra.

*

O narrador, homem de meia idade e professor universitário, entediado com a rotina da vida, decide espiar a vizinhança e com os segredos dos outros expiar os seus males. Entretanto vai tecendo um diário e mina-o de referências e citações de outros autores. Se inicialmente me pareceu um exagero, agora em releitura acho-o um detalhe obrigatório para a personagem. Ossos do ofício!

"Contrariando o que disse Herr Nietzsche:
Não são os abismos que só por si nos atraem, são os nossos próprios precipícios que se iluminam com a visão desses outros abismos: dos teus."

Nesses abismos, ficamos logo a saber, existe um alvo: uma mulher, ser observado e desejado, para quem o narrador se dirige: escrevo como se me lesses. (...)
"Ficaram-me os olhos em ti na primeira vez que te vi (...) 
Não sei como exprimir a ideia.
Fui-te construindo: como quem constrói com objectos soltos uma infância que a vida fez esquecer (...)"

Desenamorado da vida, o professor avança compulsivamente com o telescópio e o acto de espiar rapidamente o ultrapassa. 

"As vidas dos outros, olhadas com distância, sempre me interessaram (...) interessam-me como histórias: matéria bruta: acasos. Não me prendem por aquilo que contam, mas pelo que possam esconder: (...) como algo que está ali diante de nós e que não se revela a um olhar distraído: que temos de descobrir: como deve acontecer nas boas histórias."

“O espaço doméstico, esse ringue de silêncios pactuados e de lutas mudas, pode ser o território mais difícil de habitar: mas é talvez dos poucos a que sabemos poder sempre voltar, e é isso que, de uma forma ou de outra, nos conforta e sobretudo nos protege.”

Eu não sei se Riço Direitinho consegue essa tal boa história, mas consegue escamotear as intenções do personagem que mais adiante no relato podem surpreender o leitor. Fugindo desse ringue doméstico e de forma tão ao acaso e quase natural, a vida evolui para a devassidão. 

"É verdade que, depois de termos deixado calcificar a vida (assim como acontece com as torneiras que já não abrem nem fecham, só pingam durante a noite - não, isto não é uma irónica metáfora sobre o sexo conjugal), precisamos quase sempre de um estímulo para ressuscitar."

Contrariando essa calcificação da vida, o professor ressuscita fantasias sexuais que compulsivamente segue, com bazófia e profusão, trazendo constantes descrições de cenas de sexo explícito para a narrativa.  

"A transgressão, mais do que libertar, conduz ao desejo: a fantasia é sempre um acto transgressor, necessário para todas as almas que acreditam - que acreditam no que quer que seja."

Se o personagem transgride fá-lo em plena consciência e coragem. Pode não a ter para a sua fantasia mais concreta: ela, a desejada, mas o abismo profundo da solidão revela-lhe lugares e noites de plurais onde se pode abandonar à libertinagem que Lisboa lhe oferecer e a partir daí detalha um guia com direito a códigos de conduta, dress code e localizações gps. 

"Há nas verdadeiras almas atormentadas um desespero existencial que passa para o sexo (...)"

E é isso, temos aqui uma alma atormentada e não se lhe conhecem mais motivos do que um amor angelical e platónico e umas quantas críticas à sua forma física, erotizando-lhe apenas a inteligência. No entanto, para além da solidão também o sexo é embutido na rotina: sexo desenfreado como catarse para esbater a solidão nos breves segundos de um orgasmo.

As repetidas jogadas sexuais, algumas roçando o ridículo (como a aluna que pede: “Foda-me o cu, professor! E vá declamando um soneto de Bocage." - que professor faz) tornam-se o «pão nosso de cada dia» e o relato vai perdendo intensidade. Repete-se o sexo explícito mas cheio de metáforas, a critica social é mordaz e inteligente, mas o que mais fica é que o sexo tanto exibe o mais moderno de cada um, como esconde medos, fracassos e o peso do envelhecimento. 

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