quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

«Fica comigo» de Ayòbámi Adébáyo :: Opinião

 


Uma mulher cheia de coisas impactantes dentro de si, e usar o "cheia" não é inocente, despoja-se de anos de vida em comum e regressa a si desfeita como um laço que a vida afrouxou ao longo de anos de sofrimento às mãos das exigências feitas às mulheres: a obrigação de ter um filho e tendo-o, saber mantê-lo vivo, senão, substituí-lo por outro. Dito assim parece frio e é precisamente dessa forma que a escrita de Adébáyo nos faz crer que a sociedade nigeriana o exige às suas mulheres. O casamento pressupõe descendência, dois não são uma família e se uma mulher não chegar, outras mais lhe deverão suceder. Se a mulher não tem escolha, o homem também não.

"As coisas que importam estão dentro de mim, trancadas no meu peito como num túmulo, um sítio onde tudo pode permanecer, o meu cofre do tesouro em forma de caixão."
Neste livro de Ayòbámi Adébáyo não ter um filho é estar em guerra e ter esse mesmo filho é ter um escudo para essa guerra. Na história de Yejide e Akin e em certa parte de Dotun, descobrimos que essa guerra tem raízes ancestrais e trata-se com mesinhas e rezas, e oprime as mulheres de forma esmagadora, mas é igualmente nefasta para os homens com problemas que não podem sequer ser mencionados como problema.
Este livro ganha ainda mais intensidade por dar voz ao marido e os capítulos na sua voz antecipam segredos ao leitor, muito antes de se adivinharem para a restante família e revelam uma angústia e um desnorte face à sua posição na sociedade e na família, uma desordem maior que ele.
"E é verdade, ou meia verdade, mas ainda assim verdade. Além disso, que seria do amor sem as meias verdades, sem as versões melhores de nós próprios que exibimos como se fossem as únicas possíveis?"
As tradições da Nigéria, os presságios entre os dois lados da família, as meias verdades entre um casal, a guerra civil como pano de fundo, tudo contribui para que esses filhos, tido ou mortos, se tornem num elemento quase distópico, elevando a culpa a patamares que resvalam para o abismo, não sem antes de um desfile de culpa que tortura e bombardeia homens e mulheres. E este casal afunda-se, dia após dia numa dor silenciosa, numa ansiedade aflitiva que os leva a tomar atitudes que ao nossos olhos parecem incompreensíveis e de outros tempos.
"Durante o nosso primeiro ano de casados, sonhei muitas vezes com os estudantes mortos. Costumava vê-los estirados no asfalto, numa fila interminável, todos vestidos com calças de ganga azuis e justas. A Yejide estava sempre de pé do outro lado dos corpos. Eu tentava chegar até ela mas havia demasiados corpos no caminho."
Havia demasiados corpos no caminho é uma frase que faz todo sentido na história deste casal e que cedo surge no enredo mas o leitor não tenho noção de que corpos são esses. Mais pesados que esses corpos são a culpa, a mentira, o segredo e as vontades da família.

"Lá em baixo estava tudo em silêncio. O Silêncio era uma presença que estendia o braço e me dava murros na barriga (...) Tinha a certeza que as mãos (...) me tinham imprimido na pele marcas que brilhavam sub a lâmpada fluorescente que iluminava o nosso quarto, para que o meu marido as visse, marcas que nenhum banho que eu tomasse apagaria."

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