quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

“Manual de sobrevivência de um escritor”, de João Tordo :: Opinião


Auster, Melville, Rilke, Mishima, Pessoa, Kafka, Tolstói, Dostoiévski, Levi, Camus, Javier Cercas, Javier Marias, John Cheever, Ian McEwan, Raymond Carver, Joyce, Philiph Roth, S. King, Denis Johnson, Bolaño ou Baudelaire... 

"Sem todos estes nomes, não me teria tornado escritor. Sem a companhia de todos eles, sem a companhia dos mortos. Por isso, concluo que um escritor é uma estranha e improvável mistura de tradição colectiva e patologia individual, de uma ferida aberta, muito particular, e do caminho que outros, antes de si, lograram explorar e que ele vai percorrendo com paciência e humildade.

"A literatura nasce de uma necessidade quase atómica de ordenar aquilo que surge catastrófico, de reunir num volume a fragmentada experiência humana."

"Os Malaquias" de Andrea del Fuego - Opinião

 


Creio que o leitor aterra em "Os Malaquias" tal com o raio lhes entra pela casa e lhes esturrica a hipótese de serem uma família com princípio, meio e fim. 
A família está em risco tal como a localidade rural Serra Morena que, em bagunça, é um espelho líquido do progresso, ou seja, a modernidade chegou em forma de água devido a uma barragem que surgiu numas terras ali próximas.

Seja pelo progresso seja pela fatalidade que lhes aconteceu, os três irmãos Malaquias são separados e ganham sortes diferentes, às mãos dos interesses alheios mais diversos e assim passarão a próxima década - que se atravessa nos olhos do leitor como outro relâmpago, já que a autora tem a capacidade de num parágrafo narrar a história de uma família e em três ou quatro páginas trilhar uma década como quem corre uma maratona. E fá-lo de forma muito concisa e quase cirúrgica, escolhendo palavra a palavra e uma ordem muito peculiar para que todas as imagens ganhem uma vivacidade determinante e assim possamos ligar-nos às personagens. Ou não. Pois tal cirurgia causa uma certa estranheza.

"Júlia (...) recebia cuidados para não perder o viço dos doces de vitrine."

Mais peculiar ainda é termos outras presenças ou estruturas nesta narrativa que têm tanto viço como os vivos e contribuem tanto ou mais para o curso da história.

"Geraldina Passos morreu no começo do verão, mas enterrar o corpo não apagou a figura. Restou uma espécie de memória, que mesmo minúscula e transparente tinha uma estrutura, permanecia organizada e material. Circulava como o pó de uma penteadeira não encerada, a respiração de alguém a faria levitar."

E levitamos!
Muitas vezes perdidos, outras perplexos com a raridade com que a autora conjuga certas palavras. 

"(...) Nico deu por exata uma surdez parcial, sequela do trovão. Ele ainda se refrigerava debaixo da Lua mesmo adulto (...). Absorvia luz feito bebê sorve o leite da mãe, fortalecendo as vértebras, transformando galhos de cálcio em toras de madeira nobre."