Creio que o leitor aterra em "Os Malaquias" tal com o raio lhes entra pela casa e lhes esturrica a hipótese de serem uma família com princípio, meio e fim.
A família está em risco tal como a localidade rural Serra Morena que, em bagunça, é um espelho líquido do progresso, ou seja, a modernidade chegou em forma de água devido a uma barragem que surgiu numas terras ali próximas.
Seja pelo progresso seja pela fatalidade que lhes aconteceu, os três irmãos Malaquias são separados e ganham sortes diferentes, às mãos dos interesses alheios mais diversos e assim passarão a próxima década - que se atravessa nos olhos do leitor como outro relâmpago, já que a autora tem a capacidade de num parágrafo narrar a história de uma família e em três ou quatro páginas trilhar uma década como quem corre uma maratona. E fá-lo de forma muito concisa e quase cirúrgica, escolhendo palavra a palavra e uma ordem muito peculiar para que todas as imagens ganhem uma vivacidade determinante e assim possamos ligar-nos às personagens. Ou não. Pois tal cirurgia causa uma certa estranheza.
"Júlia (...) recebia cuidados para não perder o viço dos doces de vitrine."
Mais peculiar ainda é termos outras presenças ou estruturas nesta narrativa que têm tanto viço como os vivos e contribuem tanto ou mais para o curso da história.
"Geraldina Passos morreu no começo do verão, mas enterrar o corpo não apagou a figura. Restou uma espécie de memória, que mesmo minúscula e transparente tinha uma estrutura, permanecia organizada e material. Circulava como o pó de uma penteadeira não encerada, a respiração de alguém a faria levitar."
E levitamos!
Muitas vezes perdidos, outras perplexos com a raridade com que a autora conjuga certas palavras.
"(...) Nico deu por exata uma surdez parcial, sequela do trovão. Ele ainda se refrigerava debaixo da Lua mesmo adulto (...). Absorvia luz feito bebê sorve o leite da mãe, fortalecendo as vértebras, transformando galhos de cálcio em toras de madeira nobre."