“(…) a lembrança mais nítida que Melchor guardava da sua infância era o ruído, um ruído tão ubíquo quanto persistente, que lhe parecia indistinguível do som habitual da realidade, como se esta carecesse do direito a existir sem o barulho dos tubos de escape, das buzinas dos carros, (…) sem gritos ébrios ou insultos aguerridos ou rixas de vândalos (…) um bairro tóxico.”
Diz-se que a realidade supera sempre a ficção e a vida de Melchor, aqui descrita sobriamente por Cercas, é a prova disso. Um menino destinado a ser um Rei Mago, que disso só herdou o nome, Melchor, cresce desamparado e crente nos males da sociedade. Maltratado, mas também capaz de maltratar é encarcerado e aí descobre o seu caminho, converter-se pelo poder da literatura, através de sucessivas leituras de Os Miseráveis.
«Da sociedade não recebera senão males. Os homens só lhe tocaram para o maltratar. Qualquer contacto que com eles teve significou uma ferida (…) de sofrimento em sofrimento, chegou à convicção de que a vida é uma guerra e de que, nessa guerra, ele era o vencido. E, não tendo outras armas para além do ódio, resolveu aguça-lo no presídio e levá-lo consigo à saída.»
Guiado por excertos que toma como guias orientadoras da sua vida, Melchor, um Javert secretamente virtuoso, decide dedicar a sua vida a sarar o ódio que asfixiou a sua juventude. No entanto, o aconselhado exílio na «Terra Alta» não lhe trará o sossego prometido. Ou duradouro.
Por lá ainda pairam os fantasmas da Guerra Civil e a metralha de uma batalha sangrenta que contrastam com a beleza imponente e silenciosa do local (e as horas de leitura na biblioteca) mas não só o passado se imiscui na vida de Melchor como um acontecimento brutal altera o compasso da localidade: um crime sangrento que brutaliza o ramo mais antigo da família Adell; que como uma árvore enorme a tudo faz sombra.
“No ar paira um cheiro intenso a sangue, a carne torturada e a suplício, e uma sensação estranha, como se aquelas quatro paredes tivessem preservado os uivos do calvário a que assistiram; ao mesmo tempo, Melchor Julga sentir no ar do aposento – e talvez seja isto que mais o perturba – um certo aroma de exultação ou de euforia, alguma coisa para a qual não encontra palavras mas que, caso as encontrasse, poderia definir como o rasto festivo de um carnaval macabro, de um ritual demente, de um sacrifício humano desfrutado.”
Um crime que parece fruto de um ódio frio e destruidor, mas não indiscriminado, coloca Melchor num estado obsessivo. Em apneia, pela persistência quase tóxica, desassossegando o percurso que tem vindo a construir com Olga (e com os livros).
“(…) retirarem-se sem opor resistência, como se se rendessem diante daquele suicídio colectivo ou como se estivessem tão fartos da guerra como os seus inimigos e já não tivessem disposição para continuar a matar.”
Cercas é exímio nas descrições, no cortar o friso cronológico e suspender cada acção outra, história atrás de história, sabendo com toda a mestria selecionar, cirurgicamente, que eventos nos revela, por vezes telegraficamente, noutras num tom poético, capaz de colocar o leitor no cenário, seja no mais macabro ou em perseguição ou entre os lençóis com o casal que descobriu o prazer de ler em voz alta um para o outro.
«Aconteceu-lhe tudo o que podia acontecer-lhe. Sentiu tudo, sofreu tudo, experimentou tudo, suportou tudo, perdeu tudo, chorou tudo. No entanto, é um erro acreditar que a sorte se esgota e que se toca o fundo de alguma situação, qualquer que seja. Aquele que sabe isso vê em qualquer escuridão.”
Nessa escuridão pulsam sentimentos que moldam decisões auto-destruidoras, denunciando que as feridas não fecham na totalidade. E pior, alimentando desejos profundos de vingança e justiça. Porém,
mas a que preço e com que legitimidade? É sobre isso que Cercas questiona e reflecte neste seu primeiro policial.
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