terça-feira, 16 de agosto de 2022

«Uma Vida à Sua Frente» de Romain Gary :: Opinião

Numa França vista do 6º andar de um prédio pobre, Momo, um rapaz que “não foi datado” vive aos cuidados de Madame Rosa, ex-prostituta e ex-judia, (os próprios papéis provam essas “não-existências”) que o recebeu por ele ser uma “criança ilegal”, “um filho de puta”. Mas os anos estão a passar e os quilos da Madame a aumentar à mesma velocidade que o seu corpo se deteriora com eventos em que a cabeça ganha pernas e vai passear.

As histórias destes Miseráveis, porque Victor Hugo e a sua capacidade de descrever a França e a miséria são uma inspiração e aspiração de Momo (e do Senhor Hamil) que, quando crescer, quer escrever assim a histórias dos seus miseráveis e Roman Gary consegue isso mesmo em «Uma vida à sua frente» na voz desta criança de dez anos, Momo, que com a sua inocência, própria da idade, mas com a perspicácia (e alguma confusão, já que Momo ao início era muito novo para ir à escola e de repente já tinha idade a mais) de quem teve de se desenvencilhar sozinho… até para ter uma mesada!

“Quando os vales deixavam de vir para um de nós, a Madame Rosa não punha o culpado na rua. Era o caso do pequeno Banania, o pai dele era desconhecido, logo não o podíamos censurar por nada; (…) a Madame Rosa ralhava com o Banania mas ele estava a borrifar-se, porque só tinha três anos e sorrisos. Acho que a Madame Rosa teria dado o Banania à Assistência, mas não o seu sorriso, e como não se podia separar um do outro, via-se obrigada a ficar com os dois.”

Momo narra a sobrevivência que por ali se vive quase sem maldade, embora exista dinheiros e leis à mistura, coisas que Momo pouco percebe, entre muitas outras, mas de solidão, desamparo e ausências Momo percebe.

“Não faço ideia do que me deu, mas havia anos que não tinha mãe nem pai, nem mesmo bicicleta (…). Fiquei todo tocado e possuído pela violência, nem dá para acreditar. Vinha de dentro de mim, e é ali que é pior. Quando vem de fora com pontapés no cu, podemos sempre fugir. Mas de dentro, não é possível. Quando me apanha, quero ir-me embora e não voltar mais a lado nenhum. É como se estivesse alguém a morar dentro de mim. Começo a gritar, atiro-me para o chão, bato com a cabeça para sair, mas não é possível, não tem pernas, nunca temos pernas dentro de nós. Faz-me bem falar disto, aliás, é como se estivesse a sair um pouco. Estão a perceber?”

E o leitor vai percebendo!

Vai aceitando a dureza do relato enquanto desanuvia pelo humor e ironia com que é descrita e é aí que reside toda a peculiaridade da escrita de Gary; é na força do humor, pelo traço inocente da voz de Momo que a fronteira que segrega estas pessoas, a invisibilidade e o preconceito em que vivem, é denunciada.

Ainda assim, existem excepções, e ainda bem!

“Eu ia muitas vezes sentar-me na sala de espera do Doutor Katz, já que a Madame Rosa repetia que era um homem que fazia o bem, mas não senti nada. Talvez por não ter ficado tempo suficiente. Sei que há gente que faz o bem no mundo, mas não fazem isso a toda a hora e é preciso calhar no momento certo. (…) A Madame Rosa dizia que o Doutor Katz era a medicina geral, e é verdade que se via de tudo ali, judeus, claro, norte-africanos, para não dizer árabes, negros (…)”

«Uma vida à sua frente» denuncia e reflecte sobre temas que ainda hoje são discutidos, seja pela controvérsia, seja pela herança tóxica dos conflitos armados, do colonialismo ou outros que ainda têm muito de tabu, como é o caso da eutanásia.

“Não queria ouvir falar do hospital onde nos fazem morrer até ao fim, em vez de nos darem uma injecção. Dizia que, em França, estão contra a morte serena e que nos obrigam a viver enquanto ainda formos capazes de sofrer. A Madame Rosa tinha um pavor à tortura e dizia sempre que, quando tivesse que chegasse, far-se-ia abortar. (...) Vi logo que ela se tinha deteriorado mais na minha ausência e sobretudo em cima, na cabeça, onde ela estava pior do que nos outros sítios. (…) estava tão danificada que até os seus cabelos tinham parado de cair porque o mecanismo que os fazia cair tinha-se também deteriorado.”

É impossível ao leitor não sorrir, por vezes até rir à gargalhada com os termos inocentes de Momo, num humor afiado, quase cáustico, que dão toda uma outra dimensão ao que nos narra e a leveza com que revela preocupação pelo sentido da vida: “se quiserem a minha opinião, o tempo, é para os lados dos ladrões que temos de o ir procurar.”

Procurar o tempo junto dos ladrões, abortar alguém na velhice, “perder-se no seu interior” ou “ter uma cabeça que passeia” quase que retira seriedade aos assuntos, mas acrescenta uma sensibilidade enorme a uma criança que efectivamente é responsável por uma mulher idosa com demência e a quem, se pudesse, daria uma morte digna e como ela pretendia, enquanto ainda podia escolher.

“- Vão obrigar-me a viver, Momo. É o que fazem nos hospitais, têm leis para isso. Não quero viver mais do que o necessário. Há um limite, até para os judeus. (…) Não quero viver só porque a medicina o exige. (…)
Prometes?
- Khaïrem.
Quer dizer «juro» (…)
Eu teria prometido qualquer coisa à Madame Rosa para fazê-la feliz, porque mesmo quando se é muito velho a felicidade ainda pode ser útil (…).”

A felicidade mesmo que a conta gotas é sempre útil e dá-la, às vezes até sem a ter, é um acto de amor. E é preciso amar mesmo que seja num «buraco judeu». E Gary conseguiu um livro terno, não pelo que conta, mas pela forma como o faz, com um humor redentor.


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