“O poeta necessita de uma metade mágica para fazer poesia.” Otávio Paz
Será essa metade a mãe? A vida ou a morte? A guerra? Ou a resistência?
Ao poeta não podemos exigir que evite a guerra. Mesmo palavras poderosas que ferem e separam. Mesmo essas, não matam. Por isso, ao poeta, só podemos pedir que resista e reconstrua os vazios da guerra, num diálogo alimentado a ausências.
Em “A vida não é aqui”, Kundera “deixa” escorregar do corpo de uma mulher, para os lençóis manchados do mundo, um poeta. Um bebé primaveril e por isso de nome Jaromil ;) Com o bebé nasce uma mãe, experimentando a poesia abrupta do corpo, uma animalidade que até ali a repugnava.
“Tratava-se de uma coisa completamente nova, porque a mãe experimentava desde a infância uma repugnância relativamente à animalidade, tanto dos outros como sua; achava degradante sentar-se no assento das sanitas (…), e havia mesmo alturas em que tinha vergonha de comer diante de gente, porque a mastigação e a deglutição lhe pareciam repugnantes. E eis que estranhamente a animalidade do seu filho, erguida acima de toda a fealdade, purificava e justificava aos olhos dela o seu próprio corpo.”
Talvez a metade mágica seja o amor, nas suas mais variadas formas e lutas e Jaromil teve a sorte de começar a vida com o amor materno, bem como o da restante família, porém se a falta de amor causa danos, tê-lo não o isentou de dissabores.
“O amor materno imprime na fronte dos rapazes uma marca que repele a simpatia dos colegas.”
E talvez alguns dissabores o conduzam a alguma solidão, uma solidão povoada por companhias fantásticas, tornando-a numa solidão produtiva.
“Sonhar com cães tornou-se a paixão da sua solidão (…) e como passava muito tempo à secretária do pai com um lápis e papel (…) de maneira que os seus devaneios e a sua falta de jeito deram origem a um universo estranho de homens cinocéfalos, um universo de personagens…”
Porém, quando as solidões se cruzam abrem brechas que podem virar abismos: “o abismo da intimidade ilícita e da compreensão proibida.”
Um livro sobre o universo interior que se alimenta muito do que não é dito, embora o que é dito e dado a entender nas entrelinhas seja suficiente para de uma história tecer várias, enredando-lhe os fios com os da literatura, da guerra, da filosofia, da poesia, da traição, da obscuridade, da loucura e da depressão, do amor e da solidão. Ou seja, a vida a enredar-se na vida. Nas vidas! Quando uma se esconde, outra se revela.
“Xavier não vivia uma vida só estendendo-se do nascimento à morte como um longo fio sujo; não vivia a sua vida, mas dormi-a; nessa vida-sono saltava de um sonho para outro sonho; sonhava; adormecia a sonhar e sonhava outro sonho, de tal maneira que o seu sono era como uma caixa na qual entre uma outra caixa, e nesta uma outra caixa ainda, e nesta outra, e assim por diante.”
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