Ele pediu-lhe por favor.
Ela levantou-se, ajeitou a saia, pegou no casaco e na mala.
- O que define uma tragédia - disse a mulher -, é que sabemos sempre como acaba."
Podia escolher o epílogo com as palavras de Camus, mas estas são tão ou mais agitadoras, quantas as vezes forem recordadas ao longo da leitura.
A senhora dona Mara López:
"Havia qualquer coisa nela. Era como um... deixem-me pensar. Um desapego. Ou não. Essa não é a melhor palavra. Um desprezo, é isso. Como se todos a aborrecessem ou lhe repugnasse todo e qualquer tipo de cumplicidade. Pelo menos era essa a sua aparência. A máscara que cuidadosamente colocava todas as manhãs."O senhor doutor Jensen:
"Não sei descrevê-lo melhor, talvez vocês me possam ajudar. Como definiriam uma pessoa que não fuma, que quase não bebe, que antes e pronunciar uma palavra a pesa e calcula, de forma a evitar exageros que o façam perder tempo. Um homem obcecado pelo tempo. (...) uma perpétua contagem decrescente."
Falta apresentar a menina. A patroa mais pequena.
A menina morreu.
Sim a meninas está morta. A história pode ter vários inícios, mas o desfecho é esse. A menina morreu. A menina filha dos patrões está morta!
Quem limpa irá guiar-nos pelos eventos que levaram até o culminar da história em tragédia. E desde cedo, bem cedo, a tragédia é mais que evidente, mas se o leitor tiver pressa em conhecê-los... «Quem tem pressa perde tempo...»
As palavras não são de Estela García, quem limpa. A empregada. De boa presença, a tempo inteiro. Como dizia o anúncio. As palavras são da mãe de Estela, ou Estelita, cuja mãe sempre tentou afastar do trabalho doméstico. Em vão. A mãe também a avisava que não se pode vencer o tempo. Talvez também não se possa vencer o destino. Tempo e destino, marcados desde a nascença. Um alerta dado ao leitor logo nas primeiras páginas, como também lhe é dito que precisará de tempo (e paciência) para conhecer a menina e quem trata dela. Quem limpa. Terá que ter paciência, como tem, quem faz o trabalho doméstico; um trabalho que nunca termina. Um trabalho ao qual se junta a tarefa de educar, de mimar, de apaparicar as crianças que parecem surgir como mais uma tarefa a desempenhar num trabalho a tempo inteiro. De interna. De quem limpa e tem (apenas!) direito a um quartinho nos fundos, exíguo, sufocante. Mas a menina, Julia, precisaria de mais do que boa presença e a tempo inteiro, ela precisaria... daquilo que o leitor irá adivinhando nas entrelinhas do que é dito ou do tanto mais que fica por dizer.
"Não chorou quando nasceu, sabiam? O senhor brincava com esse silêncio sempre que ela esperneava. Quando não conseguia acalmar os berros da sua filha arisca, ele e a mulher recordavam que ela se tinha mantido em silêncio durante os primeiros dias de vida. Como se ninguém lhe fizesse falta. Como se estivesse satisfeita."
Enquanto lemos «Limpa» a sensação de estranheza vai galgando ao mesmo tempo que o temor, entre tantas outras sensações e emoções. O livro de Alia Zéran é um organismo vivo, tentacular, que nos vai apertando. Queremos avançar e saber mais. É impossível ficar sem saber mais. Mas tememos o mais que se avizinha. Adivinha-se, sem grande esforço, que um mais que irá subtrair estas vida já esmifradas de sentido. Vidas espremidas em prol da falsa aprovação.
"Mais do que uma vez me interroguei quem seriam vocês. Se por acaso, aproximando-me do vidro, conseguiria ver as vossas expressões. Mas por mais que me aproxime só vejo o meu reflexo. Então, olho para os meus olhos, para a minha boca, para as primeiras rugas na testa e fico a pensar se o cansaço não será uma etapa e se algum dia, no futuro, recuperarei a cara que costumava ter.
(...)
Pareceu-me ouvir um barulho desse lado. Foi um bocejo? Pareço-vos um livro de receitas? É verdade, a vida era isto: frango, cartilagens, tentar que as batatas não se pegassem ao fundo, que a loucura não se colasse ao crânio, que os olhos não saíssem das órbitas."
Somos interpelados diversas vezes por esta mulher. Ela limpa e mesmo que por muito limpa que seja, a sujidade, a exigência e as memórias felizes já fugidias, estão a afundá-la na tristeza e loucura, aumentando a invisibilidade que a sua função lhe vestiu, mas mesmo quando ela narra a beleza, evocando memórias, como o nome e o cheiro das árvores e o cacarejar das galinhas na terra, na sua terra, onde quase era capaz de jurar que ouvia o som das nuvens a roçar umas nas outras. A beleza é grande, do cenário e da escrita. E a beleza desse detalhe faz-nos parar para contemplarmos a a ideia. A beleza e a criatividade, mas rapidamente voltamos em busca do enredo. É escarafunchar na dor, na perda, perseguindo a tragédia, porque a nossa maior loucura, a nossa, a de todos, é focarmo-nos mais da dor do que na beleza, deixando que a realidade exista muito. Se imponha, tal como certas pessoas parecem existir mais do que outras. E seguimos contagiados. Bocejamos por inveja, sorrimos por osmose, devolvemos favores, mas e os sacrifícios?
«Os sacrifícios não se devolvem»
Mais uma vez as palavras são da mãe de Lita. A Estela raramente nomeada. Basta saberem que é quem limpa. A empregada invisível que vai perdendo o nome, as expressões, a forma, a que mal se lembra de como era. Mal se lembra de si. A que esqueceu que os sacrifícios não se devolvem, não porque não se possam mesmo devolver, mas porque vão perdendo os destinatários.
"O tempo foi passando, não sei quanto tempo, mas não foi suficiente. A alegria é sempre pouca, escrevam isso aí num cantinho." (Estela)
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