quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

«O vento mudou de direção» de Simone Duarte :: Opinião

Os ataques terroristas às Torres Gêmeas geraram ondas de pânico e pavor, de alterações à segurança e ao entendimento que os americanos (e o resto do mundo) têm face aos árabes e aos muçulmanos. Mas mais que tudo, o 11 de Setembro gerou uma Guerra ao Terror levada a cabo pelos Estados Unidos com o maior contingente de sempre a invadir e a permanecer num país estrangeiro, causando uma destruição massiva e um terror tentacular que se estende a diversas geografias para além do Afeganistão, do Iraque e do Paquistão. 

Em «O vento mudou de direção», Simone Duarte narra isso mesmo, a realidade tentacular dos efeitos colaterais de um atentado com consequências devastadoras: "Os americanos tiveram um 11 de Setembro. Nós continuamos a viver o nosso 11 de Setembro até hoje."

Esse «nós» são sete pessoas específicas que a jornalista entrevistou e conheceu, denunciando aqui como a realidade destas pessoas, representa infâncias, juventudes, profissões, famílias, sonhos, futuros... países, totalmente estilhaçados e hipotecados. Vítimas esquecidas, perdidas entre o medo e o terror paralisante de quem teve a guerra à porta de casa. Vítimas resgatadas mas atiradas para os meandros de uma imigração forçada. Refugiados para quem mudou tudo e não encontram referências em nada. Cidadãos de países em risco de se transformarem para sempre e com eles, o destino de todas estas pessoas.

"Entrou no país com um visto que só tinha validade de 10 dias. O prazo havia expirado e ela precisou de decidir entre voltar para Cabul sob a ameaça diária de atentados suicidas ou ficar num país em que o medo não a paralisaria. Não haveria outra hipótese. Só não imaginou que passaria esta primeira noite na cadeia." (Gawhar, Viena 2016)

É de salientar aquilo que parece apenas um detalhe, o de ficar num país em que o medo não a paralisaria. Ou seja, havia medo. O medo nunca abandona estas pessoas. Um medo imenso, de vidas que se vivem em suspenso perante o risco de deportação, perante a incerteza de como os serviço de cada país poderão, ou não, interpretar como urgente e necessário o pedido de asilo.

São esses diferentes medos, os de quem ficou, de quem partiu, de quem regressou - ou foi obrigado a fazê-lo; de quem lutou ou foi recrutado, aliciado, enganado... São tantas as nuances que Simone Duarte quis dar a conhecer que o retrato fica mais completo, mas não menos complexo. O 11 de Setembro tem um fio condutor para várias décadas que o antecedem. E precedem. Aliás, precederão. 

"Esta guerra era assustadora mesmo para quem havia crescido «à velocidade da guerra», como Faleeha escreveria num dos seus poemas. Era mais assustadora do que as de Saddam Hussein contra o Irão, o Kuwait, os curdos. Pela primeira vez, as mulheres, acostumadas a mandar os maridos, os filhos e os pais para o combate, estavam no campo de batalha. A guerra tinha chegado a casa." (Faleeha, Najaf, Iraque, Março de 2003)

A Faleeha aqui referida, é a poeta iraquiana, Faleeha Hassan. Este livro é feito de gente incógnita, como os milhares de migrantes que compõem as diversas crises humanitárias, mas de outros mais conhecidos, como o jornalista jordano, Baker Atyani, a quem Bin Laden concedeu entrevista pouco antes dos atentados ou do general Ehsan Ul-Haq, ex-espião-chefe do equivalente à CIA paquistanesa. 

Duarte não estabelece nenhuma hierarquia nos relatos, não dá destaque a nenhum deles, aliás só lhes atribuí sobrenomes quase no final do livro e a nossa curiosidade pode nos fazer ir pesquisar antes disso, mas o relato é intenso e interessante o suficiente apenas para ficarmos pelo enredo do livro. Aquilo que cada um deles revela, espelha um antes e um pós-11 de Setembro e mesmo nos detalhes que já conhecemos, não ficamos menos perplexos perante a complexidade das memórias e dos sentimentos.

"O problema não era a religião, mas a obsessão com o poder. A sentença de morte para quem Saddam considerava inimigo ia até ao quarto grau de parentesco." (Gena)

"(...) lia e recitava o Alcorão em árabe de cor apesar de não entender uma palavra do que estava a ler." (Ahmer, ainda criança 13 anos a ser doutrinado para se tornar num bombista suicida) 

"A vida sempre deu luta. Se a língua está amarrada á memória e ao lugar onde vive, ela quer criar as suas memórias em inglês." (Faleeha, Filadélfia, Estados Unidos, 6 de Novembro de 2019)

Escapar ou ficar tem um sabor amargo, a derrota, a sobrevivência e a medo, sempre o medo e a perseguição. E as perseguições têm tantas caras... como a da vizinha que retirou as escadas de acesso ao primeiro andar e confinou a família de Faleeha por três dias, totalmente dependentes do que ela pudesse ou quisesse fazer por eles. 

As conclusões sobre esta leitura podem ser diversas, mas a do desconhecimento do outro é a maior!

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