segunda-feira, 17 de junho de 2024

"O segredo dos teus olhos" de Eduardo Sacheri :: Opinião

“O segredo dos seus olhos”, aclamado primeiro romance de Eduardo Sacheri, foi adaptado ao cinema por Juan José Campanella, arrecadando diversos Prémios, entre eles, o Óscar de Melhor Filme Internacional (2010) e um Goya e ainda em 2016 foi inserido na lista dos 100 Melhores Filmes do Século XXI pela BBC. As ovações não são em vão, tanto livro como filme são dois objectos de culto distintos e amplamente intensos.

“Muitas vezes me surpreendeu notar no meu espírito certa alegria culpada perante os horrores alheios, como se a circunstância de sucederem coisas pavorosas aos outros fosse um modo de afastar da minha vida tais tragédias. Uma espécie de salvo-conduto.”

Benjamín Chaparro era o dono desse salvo-conduto, no entanto, um homicídio de uma bela mulher e o coração dilacerado do marido porão chaparro numa luta obstinada por descobrir o culpado, como se esse crime lhe desse “a oportunidade de ver reflectidos, nessa vida destroçada pela dor e pela tragédia, os fantasmas dos meus próprios medos.” 

domingo, 16 de junho de 2024

«O Samaritano» de Mason Cross - Opinião

Mason Cross tem publicada em Portugal a trilogia dedicada a Carter Blake, um operacional que satisfaz os pedidos do FBI quando é preciso encontrar quem não quer ser encontrado. A história que acompanha o percurso deste asset não é desconhecida das séries do grande público ou dos enredos típicos dos page turners habitualmente viciantes e frenéticos. E embora se perceba que mais tarde ou mais cedo, Blake saberá demais e tornar-se-á ele mesmo um alvo, a história não desilude, antes pelo contrário, é a perspectiva e os conhecimentos do próprio Blake que aceleram o ritmo da acção. 

Em «O Samaritano» a acção centra-se num homem que supostamente ajuda mulheres cujos carros avariam à beira da estrada. Mas será que avariam mesmo? Será ele uma ajuda?

Claro que não! No entanto, não é nada a que os detetives Allen e Mazzucco não estejam habituados: as mulheres são os alvos principais de determinado tipo de crime e o nível de violência tem escalado nos últimos, mas os corpos que agora são encontrados têm uma mutilação caraterística, um corte que é uma assinatura. 

No rasto dessa assinatura surge Blake, que desconfia de um outro profissional que ele conheceu bem.

“- É um local ótimo para se largar corpos e não se trata do trabalho de um novato. Até um recruta o perceberia imediatamente, (…).

Era verdade. Tudo o que haviam visto até ali apontava para que o corpo fosse a última vítima de uma série, e não um crime isolado. As feridas da tortura mostravam paciência, deliberação, confiança. Comedimento, até, se isso não fosse uma contradição. Tivera o cuidado de manter a jovem viva durante algum tempo. O golpe mortal fora desferido com determinação absoluta, à primeira tentativa. Várias pessoas tinham comentado o profissionalismo da sepultura. A sorte fora a única razão para o corpo ser descoberto. Tudo somado, apontava para a obra de um assassino experimentado. Mas não era a verdade completa. A verdade completa necessitava de mais reflexão antes que ela a revelasse a alguém, incluindo o homem em quem mais confiava no departamento. Sabia apenas que haveria mais corpos.”

Skills, calculismo, paciência e anos de treino, confiança e premeditação, anonimato, liberdade e impulsos homicidas tudo combinado com sorte, muita sorte a favor de um assassino que opera como um fantasma, até que um aluimento de terras o deserdou da sorte que lhe tem permitido correr o país a matar e a ocultar corpos. Crozier tem a preparação certa para continuar a sua obra: “Sem um corpo é impossível decidir conclusivamente que um desaparecimento é o resultado de um crime”, mas o facto de Blake conhecer o seu traço (o serrilhado da sua faca de mato) vem atalhar os planos de Crozier e bem sabemos que quando a pressão aumenta, os erros surgem.

E quando o caos se instala, todos são suspeitos e Blake não passa de consultor que oferece os seus serviços a troco de nada. E todos sabem que não há almoços de borla. Especialmente os detetives.


sexta-feira, 7 de junho de 2024

«O que é o quê, a história de Valentino Achak Deng» de David Eggers - Opinião


"(...) o mundo que conheci não é muito diferente do retratado nestas páginas. (...) sabíamos que as nossas histórias tinham de ser bem contadas (...) nenhuma privação ou perda era insignificante."

As palavas são do próprio Achak Deng sobre a forma que David Eggers encontrou para biografar grande parte da vida deste «lost boy» vítima da guerra civil e da ebulição étnica que vem assolando o Sudão, especialmente o Sudão do Sul, desde 1972 com a quebra do acordo de Addis Abeba, dividindo ainda mais a região e as suas diferenças étnicas e fundamentalismos religiosos e daí o título, porém, pode até ser uma metáfora para tudo o que aqui é contado, tornando difusa a linha que separa a realidade da ficção, não obstante, a violência, o abandono, o medo e as dificuldades e a enorme miséria por que qualquer povo passa perante a perseguição; ficando por vezes confuso saber quem persegue quem e porquê.

"Diz-me, onde está a tua mãe, Michael? Alguma vez a viste aterrorizada? Nenhuma criança devia ver tal coisa. É o final da infância quando vemos o rosto da nossa mãe sem expressão, os olhos baços, mortos. Quando fica derrotada ao ver simplesmente a ameaça a aproximar-se. Quando não acredita que é capaz de nos salvar."

terça-feira, 4 de junho de 2024

«Cem anos de perdão» de João Tordo :: Opinião

Se «Águas Passadas» não movem moinhos, ladrão que rouba ladrão tem «Cem anos de perdão». E estivessem certos os provérbios, o ritmo dos thrillers de João Tordo teriam por certo outro tom e embora este «Cem anos de Perdão» ainda comece com algum humor, rapidamente o cenário do crime anula qualquer risada que pudéssemos dar com um dupla de polícias trôpegos, no meio de uma ilha remota algures ao largo de Inglaterra. Aliás, Cícero está preso e o cenário na prisão está pejado de predadores e Pilar sobrevive na fria Helsínquia, rodeada de homens feios e pesadelos que adensam os seus traumas.

"(...) os pesadelos persistiam. O clarão. A memória dos dias no hospital. Os ossos do rosto desfeitos, os dentes perdidos. A recuperação lenta, morosa. Alguém lhe dissera que uma pessoa precisava de oito anos para resolver um trauma, se fosse assumido e tratado. Quanto tempo demoraria daquela maneira - oitenta anos?
(...)
O desejo, o sexo, o jogo do gato e do rato, a adrenalina que, temporariamente, lhe mitigava a ansiedade. O regresso, uma e outra vez, ao mesmo ritual perverso. Quando desligou, lembrou-se das <<características», repetidamente lidas nas reuniões: Temendo o abandono e a solidão, ficamos e regressa- mos a relações dolorosas e destrutivas, escondendo a nossa dependência de nós e dos outros, cada vez mais isolados e alienados dos amigos, das pessoas que amamos, de nós próprios, de Deus."