domingo, 7 de julho de 2024

«Terrinhas» de Catarina Gomes - Opinião

“Quer queira quer não, nas minhas memórias mais antigas parece que descubro batatas. Sempre me foram íntimas. Na casa onde eu cresci dava a impressão de que até tinham direitos”.

É entre batatas, memórias, medos e sacrifícios, e segredos, que a vida de Cláudia se estruturou. Uma vida que a partir de certa idade repele a terrinha e as perguntas que ficaram por fazer. As heranças e as coisas das quais se sabe pouco, como sempre soube pouco sobre batatas. Esse enigma, essa obsessão… onde residia o segredo que tornava as batatas da terrinha melhores que quaisquer outras?

“Durante meses a fio comprei batatas nos mais variados sítios, de mercearias a minimercados, supermercados e hipermercados. Só precisava de uma de cada vez. (…)
Pegava na batata solitária recém-comprada, numa das sobreviventes, e cozia-as às duas. Não lhes saboreava diferenças. E isso provocava em mim emoções diversas. A ausência do sabor distintivo fazia-me sentir cada vez mais próxima do dia em que as conseguiria mandar a todas embora, da libertação. Ao mesmo tempo, entristecia-me a ideia de que, ao que tudo indicava, as batatas que restaram não tinham nada de especial, que afinal eram iguais às que se podiam comprar em qualquer loja de esquina por tuta-e-meia.
Por medo de ver essa constatação a aproximar-se, persisti. Uma vez, estava a dar na televisão um programa sobre vinhos. Resolvi imitar o que vi os enólogos fazer: deixava os pedaços de batata tardarem-se-me longamente no palato, até se desfazerem.”


Especialista em provar batatas, arrumá-las, limpá-las, virá-las… Cláudia era igualmente especialista em organizar, catalogar e gerir milimetricamente a sua vida, abominando o caos, o pó, o desconforto, o que quer que fosse fora do sítio e o que demais fosse um estorvo, por ser desajustado, inútil ou não pertencente à sua vida, tal como o tio Kurt e a sua herança equivalente a uma mancheia de punhados de terra.
Com essa novidade chega também um reavivar de memórias, que revelam tanto ternura como desapego, lados opostos e geradores de conflito na personagem e parte do interesse da escrita de Catarina Gomes está aí, no equilíbrio com que usa a linguagem e que brilhantemente caracterizam Cláudia e as visões que o leitor tem daquilo que a personagem esconde atrás da capa de mulher citadina, profissional e resolvida.

“Ainda consigo visualizar a avó Adozinda (…)
Nas mãos petrificadas da avó vejo uma homenagem involuntária a uma fracção de gesto de um qualquer trabalho agrícola que eu nunca soube qual era, nem me interessou identificar. As mãos da avó viradas para baixo podiam representar uma posição com a qual se semearia algo, voltadas para cima outra com que se colheria o que quer que fosse.
Umas mãos tão tortas numa avó tão recta. Sempre me lembro da avó como uma mulher muito direita.”

O imaginário rural que se mistura com afecto mas também com um desconhecimento alimentado pela vida urbana, revela uma Cláudia que se tem esforçado por treinar a aparência de desafectação que ela própria reconhece e à qual apela quando quer manter uma distância que julga adequada e segura. Afinal, o que de bom ou produtivo pode vir da terrinha? Do passado?


Segundo ela, nada, por isso é preciso resolver a situação!


“(…) para continuar a seguir em frente. Para que recordações em forma de batata e palavras longínquas e desusadas deixem de me atravancar a vida. Surge-me, pela primeira vez, como inescapável que só o conseguirei fazer indo à aldeia, e não à distância, ao contrário do que me parecera razoável, e que ninguém o poderá fazer por mim. Só desembaraçando-me dos terrenos estranhos será possível desalojar Arrô da minha vida, de uma vez por todas.
Sossegarei, tudo voltará ao lugar. Convenci-me: é só mais esta vez.”

“É como se o campo tivesse sido escrito com um alfabeto que nunca me foi ensinado. E que, diga-se, nunca me suscitou curiosidade. É uma envolvência tão sem significado como seria uma paisagem lunar e eu caminhasse nela, um espaço sem gravidade visual. Como se à minha volta nada se passasse e nada me rodeasse, porque, convenhamos, campos e pássaros, e assim, são, para mim, zero. E esta sensação, face ao que me trouxe a Arrô, sabe-me tão bem.
Estou pronta para começar. Em cima destes campos só o frio me afecta. (…) O que sinto, cá fora, é vontade de ir para dentro, não um dentro qualquer, um dentro escolhido por mim. «Venha, venha, vamos, é por ali», chamou-me o moleiro, apontando no sentido contrário ao das casas, rumo ao desabrigo. «Vamos primeiro às suas terras que ficam mais longe.”

Cláudia personifica o abandono do interior rural, a recusa do campo como modo de vida, aqueles que renegam a terrinha, imigrando, aqueles que veneram a terra e se recusam sair, crucificando o progresso e o “comprar tudo feito”, os que dizem amá-la mas preferem o comodismo de um apartamento na cidade… «Terrinhas» é um livro que permite muitas leituras, espelhando a nossa própria relação com as origens, a família e estes quase 50 anos que inúmeros progressos e abandonos.

E embora não tenha apreciado alguma repetição das ideias ou o inventário de memórias, destaco a dualidade na personagem (desassossego familiar) que me cativou e a escrita da autora, muito fértil para criar cenários e nas descrições da Natureza.

No entanto, sei que o que me tramou foram as expectativas. Li e devorei, «Coisas de Loucos» (leia a minha opinião em Deus me Livro) e fui em busca de um registo semelhante, o que também será mostra da qualidade da autora por se reinventar a cada livro.

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