quinta-feira, 29 de agosto de 2024

«Irmã Marginal» de Audre Lorde :: Opinião


Ler Irmã Marginal é entrar num território vivo e urgente, onde cada palavra é escolhida com a responsabilidade de quem sabe que o silêncio mata. A obra de Audre Lorde, aqui traduzida com enorme cuidado e sentido político por Gisela Casimiro, não se limita a somar ensaios; constrói uma constelação de ideias, feridas, revoltas e possibilidades que apontam para um horizonte comum: todas temos voz, e essa voz merece ser ouvida, em toda a sua complexidade.

“E quando as palavras das mulheres imploram por ser ouvidas, cada uma de nós deve reconhecer a nossa responsabilidade de procurarmos essas palavras, de as ler, partilhar e estudar a sua pertinência nas nossas vidas. Que não nos escondamos atrás da farsa das separações que nos foram impostas e tantas vezes aceitamos como nossas.”

Neste livro-colosso entramos livres de intimidações, cada texto é um convite de portas abertas à reflexão; feito de palavras que acolhem e desafiam à acção. O que nele encontramos não é um discurso hermético, mas um mapa de resistências e afetos onde o feminismo negro, a poesia, a maternidade, o erotismo e a pedagogia se cruzam como vias fundamentais para a sobrevivência e a mudança. E é ainda mais, porque é transversal a todas as mulheres e as suas lutas.

“A autoconexão partilhada é uma bitola da alegria que sei ser capaz de sentir, lembra-me a minha capacidade de sentir. Essa emoção profunda e insubstituível da minha capacidade de sentir alegria pede-me à vida que a viva sabendo que tal satisfação é possível e não temos de lhe chamar nem «casamento», nem «deus», nem «além».”

Em textos como "A poesia não é um luxo", Lorde devolve à escrita poética o seu lugar como forma de pensamento e de transformação. A poesia, diz-nos, é a expressão destilada da experiência. Mais do que ornamento, ela é ferramenta para imaginar novos modos de viver. Este é o primeiro gesto de empoderamento: resgatar a linguagem como campo de acção.

Noutras passagens, como "A transformação do silêncio em linguagem e ação" ou "As ferramentas do amo nunca irão desmantelar a casa do amo", Lorde denuncia as estruturas que silenciam e dividem. As mulheres negras, as mulheres lésbicas, as mulheres pobres não cabem na narrativa hegemónica. E, no entanto, são elas que, ao ousarem falar, ao ousarem sentir e reclamar esse sentir, traçam novas linhas de possibilidade para todas.

“A diferença não deve ser meramente tolerada, mas vista como reserva de polaridades necessárias, entre as quais a necessidade de interdependência se pode difundir enquanto dialéctica. Só então a nossa necessidade de interdependência deixa de ser ameaçadora. Só nessa interdependência de diferentes forças, reconhecidas e iguais, se pode gerar o poder de procurar novas formas de ser no mundo, assim como a coragem e o sustento para agir onde não há decretos.”

Lorde mostra-nos que as diferenças não são ameaças, mas potências. A interdependência entre corpos, saberes e experiências é essencial para gerar mudança. Este é o cerne do seu tratado ético: não basta reconhecer a dor; é preciso traduzi-la em proposta. E não basta ter voz; é preciso criar espaços onde essa voz não seja apenas tolerada, mas celebrada.

Talvez por isso, a frase "a tradução não é um luxo" que se associa a Gisela Casimiro seja tão certeira. Traduzir Irmã Marginal é mais do que converter palavras de uma língua para outra; é tornar acessível um pensamento que liberta. É dar nome às experiências das mulheres que vivem fora do centro, fora do discurso dominante. E isso nunca é um luxo. É necessidade.

“Esse ódio e a nossa raiva são muito diferentes. O ódio é a fúria de quem não partilha dos nossos objectivos, e o seu fim é a morte e a destruição. A raiva é um luto de distorções entre pares, e o seu fim é a mudança. Mas estamos a ficar sem tempo. Fomos educadas a ver qualquer diferença além do sexo como motivo de destruição, e a ideia de as mulheres negras e as mulheres brancas serem ensinadas a enfrentar as raivas umas das outras sem negação, imobilidade, silêncio ou culpa é em si mesma herética e generativa. Implica que as pares se encontrem numa base comum para examinar a diferença e alterar as distorções que a História criou em torno das nossas diferenças. Pois são essas distorções que nos separam. E temos de nos perguntar: *quem lucra com tudo isto?”

Neste livro, o "empoderamento" não se esgota num slogan. Ele acontece na prática quotidiana de quem ensina o filho a não odiar, de quem vive o desejo como força vital, de quem confronta a linguagem para se tornar visível. Irmã Marginal ensina-nos que o poder não vem de dominar, mas de criar, de partilhar, de dizer e ouvir.

“Os homens com medo de sentir têm de manter as mulheres por perto para sentirem por eles, enquanto nos desprezam pela mesma capacidade supostamente «inferior» de sentir profundamente. Contudo, assim também os homens negam a sua própria humanidade essencial, encurralando-se na dependência e no medo. (…) Como mulher negra comprometida com um futuro habitável, e como mãe que ama e educa um rapaz que será homem, devo examinar todas as minhas possibilidades de ser num sistema tão destrutivo.”

Audre Lorde deixou-nos uma obra que não pede reverência, mas acção.

Porque todas temos voz!

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