Ler Irmã Marginal é entrar num território vivo e
urgente, onde cada palavra é escolhida com a responsabilidade de quem sabe que
o silêncio mata. A obra de Audre Lorde, aqui traduzida com enorme cuidado e
sentido político por Gisela Casimiro, não se limita a somar ensaios; constrói
uma constelação de ideias, feridas, revoltas e possibilidades que apontam para
um horizonte comum: todas temos voz, e essa voz merece ser ouvida, em toda a
sua complexidade.
“E quando as palavras das mulheres imploram por ser
ouvidas, cada uma de nós deve reconhecer a nossa responsabilidade de
procurarmos essas palavras, de as ler, partilhar e estudar a sua pertinência
nas nossas vidas. Que não nos escondamos atrás da farsa das separações que nos
foram impostas e tantas vezes aceitamos como nossas.”
Neste livro-colosso entramos livres de intimidações, cada
texto é um convite de portas abertas à reflexão; feito de palavras que acolhem
e desafiam à acção. O que nele encontramos não é um discurso hermético, mas um
mapa de resistências e afetos onde o feminismo negro, a poesia, a maternidade,
o erotismo e a pedagogia se cruzam como vias fundamentais para a sobrevivência
e a mudança. E é ainda mais, porque é transversal a todas as mulheres e as suas
lutas.
“A autoconexão partilhada é uma bitola da alegria que sei
ser capaz de sentir, lembra-me a minha capacidade de sentir. Essa emoção
profunda e insubstituível da minha capacidade de sentir alegria pede-me à vida
que a viva sabendo que tal satisfação é possível e não temos de lhe chamar nem
«casamento», nem «deus», nem «além».”
Em textos como "A poesia não é um luxo", Lorde
devolve à escrita poética o seu lugar como forma de pensamento e de
transformação. A poesia, diz-nos, é a expressão destilada da experiência. Mais
do que ornamento, ela é ferramenta para imaginar novos modos de viver. Este é o
primeiro gesto de empoderamento: resgatar a linguagem como campo de acção.
Noutras passagens, como "A transformação do silêncio em linguagem e ação" ou "As ferramentas do amo nunca irão desmantelar a casa do amo", Lorde denuncia as estruturas que silenciam e dividem. As mulheres negras, as mulheres lésbicas, as mulheres pobres não cabem na narrativa hegemónica. E, no entanto, são elas que, ao ousarem falar, ao ousarem sentir e reclamar esse sentir, traçam novas linhas de possibilidade para todas.
“A diferença não deve ser meramente tolerada, mas vista
como reserva de polaridades necessárias, entre as quais a necessidade de
interdependência se pode difundir enquanto dialéctica. Só então a nossa
necessidade de interdependência deixa de ser ameaçadora. Só nessa
interdependência de diferentes forças, reconhecidas e iguais, se pode gerar o
poder de procurar novas formas de ser no mundo, assim como a coragem e o
sustento para agir onde não há decretos.”
Lorde mostra-nos que as diferenças não são ameaças, mas
potências. A interdependência entre corpos, saberes e experiências é essencial
para gerar mudança. Este é o cerne do seu tratado ético: não basta reconhecer a
dor; é preciso traduzi-la em proposta. E não basta ter voz; é preciso criar
espaços onde essa voz não seja apenas tolerada, mas celebrada.
Talvez por isso, a frase "a tradução não é um
luxo" que se associa a Gisela Casimiro seja tão certeira. Traduzir Irmã
Marginal é mais do que converter palavras de uma língua para outra; é
tornar acessível um pensamento que liberta. É dar nome às experiências das
mulheres que vivem fora do centro, fora do discurso dominante. E isso nunca é
um luxo. É necessidade.
“Esse ódio e a nossa raiva são muito diferentes. O ódio é
a fúria de quem não partilha dos nossos objectivos, e o seu fim é a morte e a
destruição. A raiva é um luto de distorções entre pares, e o seu fim é a
mudança. Mas estamos a ficar sem tempo. Fomos educadas a ver qualquer diferença
além do sexo como motivo de destruição, e a ideia de as mulheres negras e as
mulheres brancas serem ensinadas a enfrentar as raivas umas das outras sem
negação, imobilidade, silêncio ou culpa é em si mesma herética e generativa.
Implica que as pares se encontrem numa base comum para examinar a diferença e
alterar as distorções que a História criou em torno das nossas diferenças. Pois
são essas distorções que nos separam. E temos de nos perguntar: *quem lucra com
tudo isto?”
Neste livro, o "empoderamento" não se esgota num
slogan. Ele acontece na prática quotidiana de quem ensina o filho a não odiar,
de quem vive o desejo como força vital, de quem confronta a linguagem para se
tornar visível. Irmã Marginal ensina-nos que o poder não vem de dominar,
mas de criar, de partilhar, de dizer e ouvir.
“Os homens com medo de sentir têm de manter as mulheres
por perto para sentirem por eles, enquanto nos desprezam pela mesma capacidade
supostamente «inferior» de sentir profundamente. Contudo, assim também os
homens negam a sua própria humanidade essencial, encurralando-se na dependência
e no medo. (…) Como mulher negra comprometida com um futuro habitável, e como
mãe que ama e educa um rapaz que será homem, devo examinar todas as minhas
possibilidades de ser num sistema tão destrutivo.”
Audre Lorde deixou-nos uma obra que não pede reverência, mas
acção.
Porque todas temos voz!

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