quinta-feira, 4 de maio de 2017

«Rapariga em Guerra» de Sara Novic - Opinião



No decorrer do ano de 1991 a infância de Ana é abalada pelo começo da guerra civil, depois da Croácia ter estado agregada aos países que compunham a Jugoslávia. A simplicidade e a inocência da sua primeira década de vida, começou a ser posta em causa e os sonhos de menina rapidamente desabaram junto com o conflito que se instalou. 

Durante a primeira parte da narrativa, ficamos a saber do desfecho brutal que faz a clivagem na vida de Ana, mas não sabemos o que aconteceu depois. É nessa busca que entramos na segunda parte do livro, outra década depois. A narrativa avança com os conflitos internos de quem se procura a ela mesma e o leitor procura saber o que mais a guerra lhe roubou.

"(...)
Senti-me a gritar quando me apercebi do que tinha acontecido. Outro tiro, um que ecoou. Esperei, olhei para o meu pai. Depois, sustive a respiração e caí.
Estava escuro e pegajoso e cheirava a suor e mijo. Virei a cara para o lado para poder respirar. Algo pesado caiu-me sobre as pernas, mas sentia-me distante do meu corpo e não me conseguia mexer. Concentrei-me apenas no canto da minha t-shirt, outrora branca, vendo-a ficar progressivamente ensopada com o sangue de outras pessoas."

Esta cena, completa e ainda assim curta, é das mais duras de todo o livro, Julgo que, mesmo com a breve descrição que faz, a autora nos transporta a um cenário de horror e medo, ficando todo o tempo tal cena na cabeça do leitor, especialmente pelas palavras do pai, quase como um último ensinamento. Palavras breves que a obrigaram à capacidade de se camuflar e dessa forma sobreviver. 

É nessa sobrevivência que, em 2001, já em Nova Iorque, temos Ana a participar e a partilhar um pouco da sua história numa conferência da ONU. Nesse cenário que ela deseja pouco sensacionalista, existe uma frase que espelha um pouco do que terá sido a outra parte da sua infância.

"Embora tivesse aprendido a expulsar as armas dos meus pensamentos, ao falar delas era invadida por um sentimento inesperado: saudade. Por mais chocantes que as armas fossem para o pálido grupo reunido à minha frente, para muitos de nós era sinónimo de juventude, cobertas pela mesma camada de nostalgia que abrilhanta qualquer infância."

A dureza e o espanto talvez nos choquem, mas essa foi (e ainda é) a realidade de muitas crianças. As crianças soldado. Fechadas na violência e no mutismo que as marcantes vivências de guerra lhes deixaram. O entendimento que existiu entre quem lá esteve dificilmente poderá ser compreendido por quem apenas observa e escuta relatos.

"Por um momento, observei-o enquanto pedalava furiosamente, transformando a sua dor em energia, em algo tangível e científico. Depois dissolvemos a fila e mudámo-nos para outro canto do abrigo, para lhe dar alguma privacidade, o que pareceu a coisa certa a fazer de acordo com o código do comportamento de guerra, que íamos inventando à medida das nossas necessidades."

Desse código inventado pela pressão da guerra, sobrevive e cresce uma rapariga numa guerra maior; a sua. Interior e consigo mesma em busca do ficou para trás para poder seguir (verdadeiramente) em frente. 

*

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