terça-feira, 2 de maio de 2017

«Canção Doce» de Leïla Slimani :: Opinião


Acho que devo começar já por dizer que não encontrei nada de doce neste romance. Nem tal era esperado! As crianças não são propriamente uma doçura, a maternidade também não, o lado profissional e a ambição menos ainda e Louise, é claro, sabendo que matou duas crianças, somos incapazes de lhe atribuir um único acto de doçura, compreensão ou entender a sua dedicação. E julgo ser esse misto de desprezo, com curiosidade e uma dose dura de realidade que nos faz avançar em tão cru, mas complexo, enredo. A vida familiar dos tempos modernos tem exigências que podem levar aos piores desfechos, mostrando um lado conhecido, que ter dinheiro não justifica tudo, mas que as implicações disso podem ser despropositadas e desesperantes. 

Louise, a ama de Adam e Mila, muda completamente a vida do casal, Myriam e Paul. «Canção Doce» dá-nos uma ama dedicada, mas também persuasiva e intrometida que se torna na figura central e imprescindível deste seio familiar. Marcados pela extrema dedicação, os pais, delegam bastante os filhos em prol do trabalho e ascensão profissional. O desejo de regressar à normalidade e a uma carreira na advocacia faz Myriam optar por uma ama e a possibilidade de finalmente atingir outro patamar na música faz Paul relaxar e flexibilizar com essa decisão. No entanto, o processo de vínculo e de dependência das crianças, rapidamente promove danos irremediáveis na dinâmica que existia naquela família. O foco passa a ser Louise!

Esta ficção, tão vincada e sufocante, espelha uma realidade dura e igualmente frágil, cheia de contradições que a vida moderna, exigente e por vezes supérflua, traz para a educação dos filhos, relativizando prioridades e valores. A solicitude e dependência de uns é a emancipação e desprendimento de outros, porém, a questão que se coloca, havendo filhos, é: a quem delega e entrega o amor e a educação dos seus filhos?

"À volta do escorrega e da caixa de areia, ressoam notas de baoulé, diola, árabe e hindi, são pronunciadas palavras de amor em filipino ou russo. Línguas do fim do mundo contaminam o galrejar das crianças, que aprendem umas quantas expressões que os pais, encantados, lhes pedem que repitam. (...)
À volta das crianças, que são todas parecidas umas com as outras e usam muitas vezes as mesmas roupas compradas nas mesmas lojas de marca, pelo que as mães têm o cuidado de escrever os nomes dos filhos nas etiquetas, agita-se este enxame de mulheres. Há raparigas de véu preto, (...) Há mulheres que mudam de peruca todas as semanas. As filipinas que suplicam, em inglês, aos meninos que não saltem para dentro das poças (...). Há as novas, que trabalham uns meses e depois desaparecem (...) 
Acerca de Louise, as amas pouco sabem. 
Todas elas têm segredos inconfessáveis. Escondem recordações horríveis de joelhos flectidos, de humilhações, de mentiras."

O desfecho da história sabemo-lo desde a primeira página, mas procuramos os motivos macabros ou as perturbações psicológicas que o justifiquem, no entanto, o desfecho é muito mais introspectivo e duro de concluir. Aliás, todo o desenrolar da história é um convite à reflexão, colocando o tema da maternidade em conflito com tantos outros que por vezes parece que as pessoas se esquecem. 

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Uma edição Alfaguara.
Excelente leitura, ritmada e muito bem estruturada que valeu um Goncourt a Leila Slimani. Por cá, a tradução é e Tânia Ganho. 

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