quarta-feira, 26 de agosto de 2015

«Na Margem» de Rafael Chirbes :: Opinião



"Ganha-se lá fora o que se perde cá dentro."


Considerado o melhor romance espanhol de 2013, «Na Margem» marca mais uma vez o reconhecimento de Rafael Chirbes no seu país e além fronteiras, aliás o escritor esteve recentemente em Lisboa pelo evento da Noite Europeia de Literatura.
«Na Margem» causou enorme impacto pela forma lúcida e até desapegada com que aborda, a decrepitude da crise humana causada pela crise em geral que é transversal a tantos aspectos da nossa sociedade. É, sem dúvida, um relato da condição humana, atravessando as tormentas mas também a passividade das várias fases da vida, sem esquecer uma abordagem crua e quase rude da velhice.

"O rancor é uma boa forma de garantir companhia, o poder de lançar à cara de alguém, todos os dias, o mal que nos fez: isso cria estabilidade. As pessoas pensam: que hei-de fazer? Ficar sozinho? (...) Morrer sozinho é desolador, é indecente, revela uma falha humana. (...) Há que partilhar. (...) Pega na esponja, no toalhete higiénico e toca a esfregar as carnes manchadas ... Pô-los ao teu serviço, ter uma multidão disposta a limpar-te o cu ...quantos mais melhor."

A escrita de Chirbes é crua, visceral, acusatória e povoada de memórias ferozes e, meio a vulso, analisa anos e anos da realidade familiar, empresarial e do país onde Esteban se encontra.

«Na Margem» cruza a realidade dos trabalhadores espanhóis e imigrantes, todos juntos em Espanha, mais particularmente em Olba, onde o narrador traça o perfil das relações entre ambos, tanto numa época anterior à crise e o que resta, afectado e devastado, por esta crise europeia e até mundial que teima em arrastar para o lodo famílias e empresas por completo, não poupando ninguém. Analisando muitas décadas de história.

"A reacção humana é desertar, o absurdo é ficar ali à espera que o sangue te encharque, o teu ou o alheio. Não há ideologia que consiga tirar-te isso da cabeça. (...) A certa altura deixei de distinguir os combatentes de um lado e do outro, (...) ter vivido isso une-te misteriosamente ao teu inimigo, àquele que o foi e continuou a sê-lo, converte-o em cúmplice, em camarada, o que torna tudo ainda mais complexo, mas culposo, absurdo, cruel (...)"

Com um tom, muita vezes, crítico e desapegado que lemos, sentimos, escutamos e nos arrepiamos com o relato, ora profundo, ora pragmático do velho Esteban, atravessando uma fase da vida onde a realidade, de ontem e de hoje não é mais do que um sucedâneo de memórias. Ele já não vive, apenas recorda, apenas sente a falta, questiona as acções que teve, as decisões que tomou e porquê, por quem?!

"Diria, em termos taurinos, que tive querência ao touril, eu próprio me encurralava, metia-me dentro de quatro paredes (...)"

"Mas aquilo que guardas dentro de ti, os teus pensamentos e desejos, que aparentemente nada pesam, não há Hércules que consigam carregá-los aos ombros para outro lado (...) Os homens batem por impotência. Julgam conseguir por meio da força aquilo que não alcançam por meio da ternura e da inteligência.

Chirbes recebeu com este romance o prémio de melhor narrativa 2013, mas não pense o leitor que se trata de um romance de fáceis contornos ou de capítulos organizados na linha cronológica de mais de 50 décadas de vida, não... Chirbes coloca o narrador, Esteban, lúcido e quase esfuziante na tarefa de relembrar e reviver diversos momentos ao longo dos seus 70 anos, com toda a bagagem que isso lhe dá. E esse peso sente-se e o leitor carrega-o ao longe de 400 páginas que compõem um só capítulo.
Se perante a descoberta inicial acompanhamos o ritmo com uma avidez quase de policial, tal como exige, é bom que o leitor redobre a atenção e aguce os sentidos para todo o exercício seguinte.

Num capítulo extenso e complexo, recheado de divagações, memórias e considerações, celebra o leitor, premiando-o pela resiliência. O narrador divaga mas não claudica, parece que se afasta do foco da narrativa, mas não, ele apenas acrescenta camadas à análise crítica que faz da vida, concedendo uma profundidade memorável a todas aquelas relações que foram ou são o centro da sua existência.


Rafael Chirbes faleceu neste mês, 16 de Agosto, vítima de cancro. Leia mais sobre o autor e a obra, no artigo assinado por José Riço Direitinho no Público.

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