"As lembranças que guardo dos três anos entre o dia em que vi o Peaceable Lake pela primeira vez e o dia do Sermão Terrível são surpreendentemente claras, embora, antes de começar este relato, eu teria afirmado que me lembrava de pouca coisa. (...) Mas a escrita é algo maravilhoso e terrível. Abre poços profundos da memória que antes estavam tapados."
«Despertar» foi o livro escolhido para regressar às leituras do mestre do terror, o que me deixou como uma questão: existirão épocas para determinados livros ou autor? Ou seja, rapidamente concluí, e chegar ao fim do livro não mudou essa conclusão precoce, que o prazo de leitura de King expirou. Pelo menos no que diz respeito à busca de terror e ambientes negros, macabros e marcantes.
Se Poe já não me dá claustrofobia, King também já não me tira o sono. No entanto, é preciso dizer, em abono da verdade, que King é mestre em conseguir captar a atenção do leitor, se bem que este livro chega a ser descritivo e de capítulos longos e o próprio enredo tem décadas de duração. Ainda assim, é o crivo da crítica social que mais me despertou para avançar no livro.
A religião e a cura, a demência e a doença, a agressão e o "dar a outra face", pautam o enredo como se todo ele fosse um Sermão.
"Se a nossa fé for forte, iremos para o Céu, onde entenderemos tudo. Como se a vida fosse uma piada e o Céu fosse o lugar onde a moral cósmica da história é finalmente explicada."
"- Cristo ensinou-nos a dar a outra face e a amar os nossos inimigos. (...) Isaías profetizou que chegaria o dia em que as nossas espadas forjariam arados, mas tudo o que forjámos nesta era sombria foram bombas atómicas e mísseis balísticos intercontinentais."
É entre a igreja e a falsa servidão (o vício), que Jamie, o miúdo e Jacobs, o pastor metodista, irão pautar a sua vida e a estranha amizade, ambos ligados, não pelos grilhões da fé, mas pela crença no poder da electricidade. E devia ser isso, a electricidade que, em homenagem a H. P. Lovecraft e uma certa invisibilidade mística que a caracteriza, tornaria o livro assustador, negro e típico de King.
Sobra-nos um enredo rico em crítica social, que usa bem os medos, os preconceitos, os vícios e a religião para ir alimentando personagens que questionam o sentido da existência.
"- Foi de pregador a charlatão.
Assim que dei por terminada a frase, dei-me conta de que fora um comentário cruel (...) Ele não se ofendeu, no entanto. Apenas admirou o nó da gravata perfeito uma última vez e dirigiu-se uma piscadela ade olho.
- Não faz diferença. Em ambos os casos, é só uma questão de convencer os campónios."
«Não está morto o que eternamente jaz inanimado
E em realidades estranhas até a morte pode morrer.»
H. P. Lovecraft
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