Agarre neste livro e num pano de estampagem colorida, tire os chinelos de enfiar no dedo e siga pelo trilho mais isolado até à praia. Sinta o calor da areia a espalhar-se pelo dedos, a chegar aos tornozelos, deixe a brisa invadir-lhe o rosto. Encontre um pedaço de areia só para si e leia. Leia sem parar. A sensação que se tem com este livro é de que Alexandra Lucas Coelho (ALC) o escreveu de rompante, tal é a energia com que nos agarra e prende do princípio ou fim da leitura.
"- A história do mundo começou em Alendabar, contam os nativos!
O convidado está disposto a concordar, perante o que vê. Uma orla florejante bordeja o areal, extensíssimo. Num extremo da praia, a falésia negra, encostada a um vulcão. No outro, a foz do rio incandescente (...)
Valeu a pena contornar o planeta, pensa. Nem muros nem mastins, a selva será a melhor guarnição."
Alendabar é lugar imaginário, tem cheiros fauna e flora e, restos de uma língua perdida entre canoas e um povo que se balança nas redes suportadas pelas morambeiras. Povo esse que come as cinza dos seus mortos, misturada na polpa tenra e fresca das morambas, num ritual ao pé do rio que abriga os mitos dos seus deuses ancestrais.
"Há milénios que as morambeiras de Alendabar são o braço a camas de rede, guarida a barcos de pescador, além de tudo o que nelas pousa, mora, se come ou se bebe. (...)
Mais antigo, só o cacto flor de índigo...
(...)
Fantasia é quase fé. E um sexo exposto é deus."
A escrita escorreita e tão directa de ALC quase que ataca o leitor. Há coisas escritas de forma tão declarada, tão escarrapachada, que o leitor até precisa de as ler duas vezes para as perceber melhor, e percebeu, é claro que percebeu, mas é essa incidência, esse lado tão incisivo que abanam o leitor.
"Então Aurora parou de pensar nisso. Pensou que pensar nisso é que era um truque do mal para nos desorientar, até não acreditarmos em nada. E quando não acreditamos em nada o mal ganha. Não podemos esquecer quem é o verdadeiro inimigo. O bem não é um truque do mal. O bem é acreditar que o mal não levará tudo. O bem é a luta."
E sim, este é um livro de luta, de denúncia, do mal contra o bem, da inocência da idade, mas da pouca idade marcada pelos desaires da vida. Aurora, Ossi e Ira são três jovens em defesa desse bem, buscando o lugar próprio de cada um entre a tirana que escraviza e amedronta. Tá cá tudo, neste livro cheio de foco: política, escravidão - a mais velha de todos os tempos e a mais moderna, a poluição e a preocupação com o ambiente, as questões de género e de igualdade, a falta de ética da exploração animal e a violência inerente, a ganância e a demência dos tempos modernos; mas também o amor, o luto, a paixão, o sexo e o acreditar que a vida pode ser sempre mais.
"Não há nada mais vazio do que um ecrã negro de um computador. (...) e dentro desse espelho dorme a voz que Zu mais ouviu nos últimos anos. Como pode ter saudades de alguém sem corpo, sem coração? Se Jade existe, como pode não estar com ela agora? Se Jade não existe, que faz ele aqui, de computador aberto?
(...)
Jade é a bela adormecida deste tempo. Aquele que nem pode ser beijada."
Alendabar tem aura de mil e uma noites, onde o sultão é o leitor, entretido pelas histórias, não de uma bela condenada à morte, mas de três jovens que parecem viver uma aventuras de «Ali Baba e os 40 ladrões», não no deserto mongol, mas numa praia de «Lagoa Azul», ou não fosse os cabelos loiros de alguns dignos de um espectáculo exótico.
Nestes cabelos loiros, a história é tecida com outros fios e unida à de Atlas, por quem Felix e a mãe estão de luto. Por fios ainda mais imaginário, há a história de um convidado, Zu, que encerra em si os medos e as ansiedades do homem moderno, essencialmente em conflito consigo mesmo.
"O humano é esse primata, não o que fala, não o que pensa, mas o da planta do pé arqueada que imagina histórias, ri com elas, chora com elas. Só ele sabe como estar vivo é o grande buraco negro."