"«Trazei-me uma espada», ordenou Salomão, na Bíblia, para resolver a contenda entre duas mães que reclamavam o direito a uma criança. «Cortai o menino vivo em dois», disse o rei, «e dai a cada uma a sua metade.» Adriana perguntava-se se, algum dia, algum deles voltaria a ser inteiro."
«Apneia» é um mergulho profundo no mar bravo da batalha desumana e desequilibrada em que se pode tornar um divórcio e consequente processo de custódia, tornando as crianças em alvos e meros números que constam em processos judiciais. Vidas perdidas nas burocracias complexas de um sistema desajustado e minado por uma surdez prepotente.
"Os homens-inquisidores lembravam-lhe Alessandro: esmiuçavam, chafurdavam e não se contentavam com silêncios, respostas sucintas. Não compreendiam que ela preferia manter as caixas fechadas, as portas trancadas, a vida devidamente etiquetada e arrumada.
Isolou-se, tornou-se um eremita,/ abrindo a porta apenas/ para uns quantos animais especiais"
Anne Sexton, «The Witch's Life»
"Tinha noção de que chegava ao psicólogo com o coração cosido no avesso do pulso e não havia ética nem lei que o fizesse voltar para dentro do peito."
Adriana dá corpo a uma montanha de sentimentos e ao anunciar de uma tragédia que é todo o processo aqui descrito, alertando para a realidade tenebrosa que vivem as vítimas de violência doméstica e os seus filhos. Apanhados num jogo emocional enorme, onde a manipulação é proporcional ao grau de violência e a uma solidão em crescendo. E o divórcio litigioso apenas surge como mais uma colecção de distúrbios, desconfianças e descrença num sistema, também aqui denunciado, seja com a cena escabrosa do advogado como o lado perverso de certas leis.
"(...) Eram dois bichos solitários, mas as suas solidões tinham formado uma família. E assim como Edoardo continuava a traçar o pai, a mãe e o filho, quando o enésimo psicólogo lhe pedia para desenhar uma família (....)
Antes da consulta, a psicóloga convocou Adriana e interrogou-a. Refez a sua vida?», perguntou, e ela fixou-a, cansada, lembrando-se de uma frase de Meg Wolitzer: «As relações eram um luxo concebido para pessoas cujo as vidas não estavam em crise.» Não, nem lhe parecia provável, mas o uso do verbo «refazer» interpelou-a.”
Refazer tornou-se uma palavra tão importante como superar. Ambas faziam parte da cura e da busca incessante pela normalidade, onde o trauma não fizesse ruído e o medo e a dor fossem devidamente desarmadilhados.
“Quanto mais lia a poesia de Anne Sexton e de Sylvia Plath, maior era o seu desejo de explorar também a escrita, a par com a pintura (…). Queria abordar o seu sentimento de impotência (…)
Uma das qualidades da pintura de Paulo Rego que a atraía era a expressão dos pesadelos íntimos. Em resposta à pergunta «porque pinta?», Paula Rego respondera: «Para dar rosto ao medo.»
Dar rosto ao medo e voz às vítimas foi o que conseguiu a autora, Tânia Ganho, com um relato que chega a ser chocante, trazendo para o leitor o peso da revolta e da humilhação. Expõe assim, o sofrimento atroz que se esconde em infinitas páginas de processos que se arrastam ao longo de anos, aumentando o sufoco e a impotência em que vivem as vítimas.
Tânia Ganho teceu, meticulosamente, um romance imponente sobre a violência conjugal e parental, sem esquecer de o dosear com um breve amor simples e descomplicado que cabia numa cama estreita, algures numa ilha isolada e pelas pinceladas de arte e literatura que distraem e nutrem o leitor. E até com isso passa uma mensagem, a de que a violência e a alienação parental são transversais a todas as camadas sociais.
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