"A noite passada sonhei que regressava a Temperley."
Podia começar assim esta narrativa que está povoada de regressos, mas não. Claudia Piñeiro escolhe a Nobel, Alice Munro, para introduzir o leitor à dor aguda, mais tarde crónica, que não matará, mas povoará para sempre as vidas bafejadas por pequenas sortes.
"(...)E aprenderás alguns truques para a aliviar ou suprimir, tentando não destruir o que só à custa de todo este sofrimento obteve."Alice Munro, «As crianças ficam»
María Elena Pujol, hoje Mary Lohan, vive duas vidas separadas por uma tragédia que desde cedo se anuncia. A sua vida silenciosa oscila entre compassos do melancólico Oblivion e uma energia prestes a explodir como em Libertango de Piazzolla.
"Eu estive muito tempo calada, sinto-me confortável no silêncio (...). A ausência de palavras enunciadas é um habitat que conheço desde sempre, o meu estado natural (...) E sinto-me desconfortável a falar do clima sem motivo (...). Talvez seja essa a verdadeira origem da minha disfonia crónica: a obrigação social de ir contra o meu estado natural de silêncio."
O silêncio tornou-se o seu lugar favorito, uma condição apropriada para a dor despojada e eterna que sente. Uma dor habitava por um palco vazio, escuro e infinito, num tempo expandido sem mais palavras do que aquelas que se repetem na sua memória e na caligrafia que reescreve uma história mas não lhe altera o fim.
"No entanto, estive sempre atenta, alerta, receosa de que um dia pudesse converter-me noutra coisa e fazer-lhe mal. Uma mulher obscura, como a minha mãe (...) mas também não se concretizou. (...) Mas a vida pôs aquela circunstância no meu caminho (...) não alcancei a nota necessária. (...). A maternidade está cheia de pequenos fracassos."
A vida está cheia de pequenos fracassos, como também de pequenas sortes, coisas tão banais como o lugar que nos calha no avião ou a pessoa que se sente ao nosso lado. Ou conhecermos alguém numa festa, onde nem sequer era suposto estarmos. Pequenos detalhes que alteram o rumo dos nossos dias.
"O tempo ensina-nos que não existe só uma definição para o amor. (...) muitas vezes uma pessoa não se apaixona pelo outro, e sim por si mesmo apaixonado. Ou pelo que implica estar apaixonado (...) Uma pessoa quer estar apaixonada, e então está. Estávamos. "
“Uma Pequena Sorte” de Claudia Piñeiro funciona muito bem como thriller, tendo como base um drama familiar que se cruza com muitas referências que exploram dor, solidão, desespero, infortúnio e até suicídio, sabendo que do outro lado da moeda estão, família, maternidade, paixão, tango, livros e sorte.
Agradou-me também ideias transversais que se cruzam com outras leituras recentes, quando Piñeiro refere a ideia de nos apaixonarmos pela ideia de estarmos apaixonados e não pela pessoa, recordando-me «Apneia» que explora a ideia de não amarmos a pessoa, mas a imagem com que ficamos por termos tal relação; ou ainda a ligação com «Olive Kitteridge» quando se aborda o suicídio como uma morte dedicada.
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