«Olive Kitteridge» valeu um Pulitzer a Elizabeth Strout e valeu recentemente à HBO uma série fabulosa.
A narrativa, dispersa por mais de uma dezena de contos, cruza vários personagens, todos eles residentes numa vila costeira, meio idílica, onde todos se cruzam mais ou menos de perto com Olive ao longo de mais de 25 anos e é dessa forma que vai surgindo, peça a peça, a imagem da temível professora do liceu, da educação que deu ao seu filho e da sua relação com Henry, o marido gentil e dedicado, que é também o farmacêutico da vila.
"Lembrou-se novamente de John Berryman. Salva-nos de espingardas e suicídios paternos [...] Misericórdia! [...] não primas o gatilho senão, a minha vida toda, sofrerei pela tua ira. (...) não, Kevin não suportava a ideia de uma criança descobrir o que ele próprio descobrira: que a sua mãe sentira uma necessidade tão grande e tão urgente de devorar a vida, que deixara as portas dos armários todos da cozinha salpicados com restos da sua corporeidade."
A escrita é cativante, mas dolorosa, retratando solidão e desamparo, mas também a incompreensão da vida quando olhada em retrospectiva e quando a única saída parece estar no cano de uma espingarda que porá fim à angústia e nos devolverá para junto dos que mais amamos. Podemos até dizer que o suicídio é um fio condutor entre histórias, um motor bizarro que mantem alguns deles em andamento.
O cruzamento de desespero sufocado e silencioso com da crueza como é descrita Olive, contracena brutalmente com a interpretação feita por Frances McDormand. E talvez seja isso que faz toda a diferença, agigantando a Olive que imaginámos conto atrás de conto.
Ler este livro e logo de seguida assistir aos quatro episódios que compõe a série é como que dar continuidade ao enredo ou uma maior consistência a algumas cenas que ficam a pairar na cabeça do leitor, quando também nós fomos alvo dessa esponja húmida de tinta.
"Depois disso, foi como uma pintura a esponja, como se alguém tivesse encostado uma esponja húmida de tinta a escorrer no interior da sua mente e só mesmo o que a esponja pontou, umas quantas manchas aqui e acolá, tivesse retido aquilo de que ela se lembra do resto dessa noite."
Os sentimentos e as emoções, tal como a memória, estão manchados e fragmentados, perdidos no meio de uma depressão longa, mas são o que mais surpreendem em Olive, ela não é simpática ou amável, mas é empática e observadora, conseguindo por vezes ajudar em situações limite, ela ama e é frágil, mesmo quando todos a julgam forte e insensível e parte dessa transformação é redentora e convocam no leitor um profundo apreço pela personagem.
"(...) O céu estava cinzento e pesado. Olive sentiu uma perturbação diferente das outras vezes. Provinha de Christopher, sim. Mas ela parecia presa entre as pinças de um remorso intratável. Um embaraço profundo e pessoal inundou-a, (...) Foi a vergonha que lhe fustigou a alma, como os limpa-pára-brisas diante de si: dois grandes dedos negros e compridos, inexoráveis e rítmicos no seu castigo."
O que fustiga o leitor, tanto no livro como na série é a angústia da depressão e uma franqueza fria, desapegada, que parecem estar inevitavelmente de mãos dadas, e talvez por isso, mais para o final da sua vida Olive pondere a culpa e a vergonha. Vai até mais longe e pensa em castigo e isso abre um fosso enorme sobre a compreensão e aceitação da doença e da coragem que é precisa para viver.
Sem comentários :
Enviar um comentário