sábado, 31 de julho de 2021

GARRA - Contos de Cecelia Ahern - Opinião


«Garra» pode ser sobre a mulher que foi à boleia, subiu uma montanha, mas desceu ao fundo de si mesma e engolida pelo chão encontrou mais mulheres lá em baixo, tantas delas na escuridão que mesmo vestidas com o fato da vergonha, descobriram que partilhar aligeira o espartilho que a todas sufoca já que todas falavam mulher, antes ainda de terem um nome ou um destino. No entanto, não falará dos flagelos mais gritantes ou até dos grotescos que assombram milhares de mulheres pelo mundo fora.

É certo que importa muito a singularidade do caminho, relatando a experiência feminina, conseguindo seguidores para a causa feminista, mas mesmo que essa experiência seja peculiar e até alucinada na forma de contar, como Cecelia Ahern encontrou para relatar estas histórias, como aquela que ficava na prateleira enquanto era alimentada por um pato ou tantas outras que semeavam plantios inteiros de dúvidas ou outras que devolviam e trocavam de maridos, para aceitarem a necessidade de tolerar e viver nos sapatos do outros. Mas o que se precisam é de mais pessoas a se colocarem no lugar de tantas outras mulheres que são limitadas, discriminadas, humilhadas, violentadas e silenciadas, só por serem mulheres. Essa realidade mais negra teimou em não estar nestas garras.

Apesar das histórias que se expandem em tantas áreas da vida e outras tantas metáforas, fica a sensação de vivências que não são necessariamente ou ferozmente femininas. Talvez lhe falte relatos de sobrevivência tipicamente feminina, por exemplo no mundo do trabalho questões tão práticas, mas tão escondidas como a higiene menstrual ou até a própria discriminação associada a essa condição só feminina. Não estranhar a minha repetição de feminina!
Porém há um conto sobre a chegada ao topo de uma montanha que é uma metáfora muito boa para a competição tóxica que existe, desnecessariamente, entre mulheres e que ao mesmo tempo revela falta de conhecimento e investimento individual. É uma boa chamada de atenção.

Existe ainda, uma sensibilização ligeira para a igualdade pelo caminho da empatia, conhecimento e partilha que são precisos de ambos os lados, seja no diálogo de mulher para mulher, sejam entre homens ou como é óbvio entre homens e mulheres, sem que esteja em causa que um lado saia vencedor, pois se superarmos os constrangimentos, a união criará uma mistura astuta e elevada da qual o todo sairá beneficiado, seja o todo de apenas uma e cada mulher, um núcleo familiar, um ambiente empresarial ou um grupo de amigas. No entanto, não é um livro para abanar estruturas, chocando-as com as desigualdades gritantes e violentas que afectam a maior parte da Humanidade, num flagelo que persiste ao longos dos séculos. 


sexta-feira, 30 de julho de 2021

Opinião "Margo" de Tarryn Fisher

A Margo caiu-me no colo. Não me recordo deste livro ter sido publicado cá mas sei que a Tarryn Fisher é amiga da Colleen Hoover. E oh well, diz-me com quem andas e eu saberei o quanto és atrofiada da cabeça. E adivinhem lá, não me enganei.

Embora goste da capa, creio que pela sinopse não comprava o livro. Acho que dá demasiado e eu gosto que se dê um dedo, não o braço todo. Pior, acho que se dá o braço errado mas isso é outra conversa e eu sou pouco de dar spoilers.

Conhecemos Margo na sua existência transparente. Nascida numa casa que parece consumir quem lá habita, Margo escapa pelas divisões onde a presença de uma mãe negligente não chega, encaixa-se nos cantos onde a luz que acompanha os visitantes noturnos da mãe não brilha e alimenta a sua vida com doces, tal é o fraco acompanhamento que teve desde tenra idade. Por esse motivo, embora passe despercebida em termos de personalidade, sente que toda a gente vê a miúda feia e gorda da casa problemática.

Ao ambiente com que cresceu dentro de casa, junta-se o bairro que a vê passarinhar diariamente mas que é por si só um mal do qual se diz que quem lá nasce não consegue escapar. Bone, nos lados menos bons de Seattle, é um daqueles sítios em que se contam pelos dedos de uma mão às pessoas que se safam. Margo é uma delas, pelo menos até uma certa altura.

Sob existência atormentada desta jovem, está uma alma boa, altruísta, que se preocupa mas que também tem sempre um pé atrás, principalmente perante as injustiças visto que é, desde sempre, alvo de uma bem grave. Essa negligência é o que inicia o pontinho escuro que habita no seu ser e é dai que cresce a escuridão que a dor, a injustiça e a raiva vão alimentando. 

Quantas injustiças teríamos de presenciar na nossa vida para sentirmos ceder a camada que nos exige justiça?

Será que sob determinada pressão todos nós, independente da força da nossa espinha, cederíamos?

Margo muda sob os nossos olhos e com ela a nossa resposta, ou pelo menos a nossa bussola moral, face às perguntas acima colocadas.

Se é uma obra da literatura? Claro que não mas é uma história que mexe connosco, que consumimos num ápice porque precisamos de saber como acaba, que nos faz pensar no mal que fazemos e no quanto, todos os dias, tantos saem impunes.

Margo tem um cadinho de todos nós, especialmente aquele lado que não colocamos livremente e sem julgamentos à superfície.

Recomendo a leitura, tão escaldante como aqueles dias de verão com leituras à beira mar/piscina.

E o melhor de tudo, está a 5€ na wook! 

sexta-feira, 9 de julho de 2021

«A cor do hibisco» de Chimamanda Ngozi Adichie :: Opinião


Porque os afectos não têm horário e a vida deve galgar os muros da religião e das tradições e encontrar no calor das relações humanas o pilar para crescer em amor e segurança. É essa a maior mensagem de «A cor do hibisco», sem esquecer o peso das tradições como identidade, superando pesos maiores deixados pela colonização.

Seguimos esta família aprisionada nos horários rígidos de um pai que nas palavras da tia Ifeoma, é um produto fidedigno da colonização e que na sua total evangelização condena o tribalismo e a tradição pagã e não admitirá aos filhos, Kambili e Jaja ou à mulher Beatrice, quaisquer desvios ímpios.
O desrespeito é punido sempre!
A ordem e o silêncio sepulcral são para ser mantidos num ambiente doméstico entregue à oração, ao agradecimento e ao falar apenas com propósito. Por isso, quando por motivos santos, os horários das crianças ficam entregue à tia Ifeoma e ao seu sorriso resplandecente, a vida só poderá mudar.

Adichie escreve ainda sobre personagens para quem as possibilidades se abrem com um sorriso e a vida flui pelo poder da liberdade e do amor que não sufoca nem espezinha. É nas mulheres interpretadas por Kambili, Amaka, Ifeoma e Beatrice que nos mostra a resiliência feminina em diferentes perspectivas e nas mais variadas fases da vida.
Kambili no tríptico rígido de ser temente a Deus, boa filha e estudante de mérito, desabrocha para a puberdade, precisando vencer o silêncio e o medo que a sufoca e humilha.
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"O inhame cozido e os legumes picantes recusaram-se a descer-me pela garganta abaixo; ficaram-me colados à boca como crianças agarras as mãos das mães à entrada da creche."
"Eu queria sorrir, mas não fui capaz. Os meus lábios e as minhas bochechas estavam petrificados, congelados, imunes ao calor que me fazia escorrer suor pelas faces abaixo. Estava demasiado ciente dos olhos dele postos em mim"

Amaka mostra à prima Kambili a amizade, a paixão e o amar-se a si mesma, mostrando que os sentimentos são para ser vividos sem restrições e que para chorar ninguém precisa esconder-se.

Beatrice, mãe, mulher e irmã, que na sua pequenez silenciosa se faz invisível, encerra em si segredos de muita violência e um medo paralisante que a cala mas não cega perante a realidade injusta em que vivem.

E claro, a tia Ifeoma, um pináculo de energia, resistência e sobrevivência, um modelo no que toca ao quebrar de padrões, sendo a força motriz das outras, é com o seu riso audível que quebra barreiras da frieza e alimenta a união possível daquela família, diminuindo o medo que limita os sobrinhos e sendo a única que confronta Eugene:

"-Ifukwa gi! És como uma mosca que segue um cadáver às cegas para dentro da sepultura."


É no alimentar dessa injustiça encontramos Eugene, a mosca a Ifeoma se refere, ele é o pai de família que castiga e justifica as suas acções aberrantes, julgando-se o mais justo dos justos, expiando os pecados por uma interpretação enviesada das escrituras, aterrorizando a sua família. No entanto, a mestria com que Adichie o descreve não chega a permitir uma total demonização deste homem, no seu lado bom ele é um omelora, o que zela pela comunidade, ainda assim ficamos a pensar se o cadáver é a religião ou a Nigéria. E é nos diálogos entre irmãos que vemos o lado político e social que também pauta a escrita da autora.

Toda a narrativa está contextualizada pelo catolicismo, o ambiente socio-político e a própria natureza, pesados e poeirentos como os ventos quentes do harmatão e do próprio golpe de estado, ainda assim, a gastronomia, os cheiros, as plantas coloridas, os tecidos, a música e a luta que vai surgindo por vários tipos de independência, iluminam todo o enredo.

As descrições ricas e peculiares são um dos traços que melhor caracterizam a escrita de Chimanda Ngozi Adichie que ao caracterizar as suas personagens as expõe por comparação ao que as envolve, assim podemos observar o medo no vento que tudo arrasta e emporcalha, os sentimentos que despertam como a comida picante que rebenta na boca ou certas descobertas que chegam com a força das chuvas e tudo limpam e abrem caminho à renovação.

"A tarde desfilou pela minha mente (...) eu tinha sorriso, corrido, rido. O meu peito parecia cheio de qualquer coisa tipo espuma de banho. Leve. A leveza era tão doce que a saboreei na língua, a doçura de um caju bem maduro, amarelo-vivo."