«Menina» de Edna 0’Brien é um livro duro, assustador, sombrio
e revoltante que expõe e denuncia uma violência com inúmeros tentáculos que subjuga
e condena inúmeras meninas e mulheres em prol da palavra (supostamente) sagrada
que perpetua tradições sociais e religiosas que em muitos aspectos não são mais
do que a continuação de crimes que continuam impunes ao longo dos séculos.
“À noite quando fico acordada, vejo o céu. Um céu vasto e
violeta, uma terra de beleza que se tornou um lugar de dor. Tantas raparigas
mortas. O triste abate das árvores.”
“As nossas blusas brancas, os nossos uniformes e lenços
depressa se dissolveram em flocos leves de cinza-pardo que pairavam por um
momento e depois eram levados a encontrar o seu caminho por entre os espaços do
arama farpado. Segui-os mentalmente, e tola, julguei que os flocos incinerados
seriam os nossos mensageiros.”
Apesar de perturbador, é um romance com passagens líricas e
luminosas, onde uma centelha, mesmo por muito pequena que seja, de inocência e
esperança, ainda paira sobre os pensamentos desta Menina. Embora logo de
seguida, arrepie o leitor com descrições ritmadas e hipnóticas de episódios
bárbaros e brutais.
“(…) carinhos
de mão cheios de pedras, empilhadas, pardas e malignas. Eram de todas as cores,
cinzentas, pretas, cor de carvão, com arestas afiladas, e haviam sido
especialmente escolhidas para o que se seguiria. (…)
Meteram-na na cova,
invisível para todos, ficando apenas à vista a cabeça e o pescoço, que passava
no rebordo na perfeição.
A excitação
estava a aumentar. Os homens troçavam e pediam que lhes dessem a honra de
atirar a primeira pedra. (…) As pedras caíam desenfreadamente, acertando com
monstruosidade naquele que fora o rosto mais lendário do enclave.
Tiras do outro
lado do maxilar pendiam (…). As próprias pedras ficavam sujas ao cair, mas eram
apanhadas de novo, para continuar o ataque.”
Existe um poder
e um pesar nas palavras de O’Brien, um poder que nos esmaga enquanto leitores e
nos faz ranger os dentes enquanto os olhos se enchem de água. A narrativa está
brilhantemente encadeada para que todas as emoções se alinhem enquanto torcemos
por Buki, Maryam e Babby. O destino só pode ser de refúgio e reparação, com
alguém que as receba, as acompanhe e lhes mostre um caminho menos sinuoso. Já
que a sociedade de onde foram abruptamente roubadas, lhes nega o direito ao
digno retorno e integração. A comunidade não quer os relatos das vítimas, os testemunhos
assustadores; não quer elos de sangue com guerrilheiros, não quer uma escrava
sexual de volta ao seio familiar.
Os pecados deles
são agora os pecados dela!
“-Não tenho
idade para ser tua mãe – digo-lhe, a medo.
A sua expressão
é vazia, ausente, o seu dedo aponta para longe com uma espécie de investida
interrogativa. Começo a chorar. Choro do fundo do meu ventre. Choro de onde
quer que deveria estar a raiz do meu amor por ela. Ela nunca me viu chorar
abertamente. Baixa o dedo e enterra a cabeça no meu peito. O bater do meu coração
é o único refúgio que tem.”
Para além da
violência e da denúncia, «Menina» é um romance sobre coragem, resiliência e
superação. É um elogio às meninas, às mulheres e às mães. Essencialmente às mães
(…) descalças, suplicantes, a viver de restos, mas sem nunca desistirem, sem
nunca desistirem. Elas não lhes cortam a garganta. Não cortam a garganta aos
filhos para lhes beberem o sangue. Suportam tudo, tal como suportaram dar os
filhos à luz. Pergunta como o fazem, essas mães com os filhos, como o fazem,
como é que tu o fazes.”
Como é que o
fazem? Como é que conseguem em condições tão violentas e indignas e no meio de
tanta devastação exterior e interior. Como é que conseguem superar, é essa a
questão que ressoa e nos faz ponderar e valorizar o que temos.