sábado, 18 de setembro de 2021

«Menina» de Edna 0’Brien :: Opinião


«Menina» de Edna 0’Brien é um livro duro, assustador, sombrio e revoltante que expõe e denuncia uma violência com inúmeros tentáculos que subjuga e condena inúmeras meninas e mulheres em prol da palavra (supostamente) sagrada que perpetua tradições sociais e religiosas que em muitos aspectos não são mais do que a continuação de crimes que continuam impunes ao longo dos séculos.

“À noite quando fico acordada, vejo o céu. Um céu vasto e violeta, uma terra de beleza que se tornou um lugar de dor. Tantas raparigas mortas. O triste abate das árvores.”

“As nossas blusas brancas, os nossos uniformes e lenços depressa se dissolveram em flocos leves de cinza-pardo que pairavam por um momento e depois eram levados a encontrar o seu caminho por entre os espaços do arama farpado. Segui-os mentalmente, e tola, julguei que os flocos incinerados seriam os nossos mensageiros.”

Apesar de perturbador, é um romance com passagens líricas e luminosas, onde uma centelha, mesmo por muito pequena que seja, de inocência e esperança, ainda paira sobre os pensamentos desta Menina. Embora logo de seguida, arrepie o leitor com descrições ritmadas e hipnóticas de episódios bárbaros e brutais.

“(…) carinhos de mão cheios de pedras, empilhadas, pardas e malignas. Eram de todas as cores, cinzentas, pretas, cor de carvão, com arestas afiladas, e haviam sido especialmente escolhidas para o que se seguiria. (…)

Meteram-na na cova, invisível para todos, ficando apenas à vista a cabeça e o pescoço, que passava no rebordo na perfeição.

A excitação estava a aumentar. Os homens troçavam e pediam que lhes dessem a honra de atirar a primeira pedra. (…) As pedras caíam desenfreadamente, acertando com monstruosidade naquele que fora o rosto mais lendário do enclave.

Tiras do outro lado do maxilar pendiam (…). As próprias pedras ficavam sujas ao cair, mas eram apanhadas de novo, para continuar o ataque.”

 

Existe um poder e um pesar nas palavras de O’Brien, um poder que nos esmaga enquanto leitores e nos faz ranger os dentes enquanto os olhos se enchem de água. A narrativa está brilhantemente encadeada para que todas as emoções se alinhem enquanto torcemos por Buki, Maryam e Babby. O destino só pode ser de refúgio e reparação, com alguém que as receba, as acompanhe e lhes mostre um caminho menos sinuoso. Já que a sociedade de onde foram abruptamente roubadas, lhes nega o direito ao digno retorno e integração. A comunidade não quer os relatos das vítimas, os testemunhos assustadores; não quer elos de sangue com guerrilheiros, não quer uma escrava sexual de volta ao seio familiar.

 

Os pecados deles são agora os pecados dela!

 

“-Não tenho idade para ser tua mãe – digo-lhe, a medo.

A sua expressão é vazia, ausente, o seu dedo aponta para longe com uma espécie de investida interrogativa. Começo a chorar. Choro do fundo do meu ventre. Choro de onde quer que deveria estar a raiz do meu amor por ela. Ela nunca me viu chorar abertamente. Baixa o dedo e enterra a cabeça no meu peito. O bater do meu coração é o único refúgio que tem.”

 

Para além da violência e da denúncia, «Menina» é um romance sobre coragem, resiliência e superação. É um elogio às meninas, às mulheres e às mães. Essencialmente às mães (…) descalças, suplicantes, a viver de restos, mas sem nunca desistirem, sem nunca desistirem. Elas não lhes cortam a garganta. Não cortam a garganta aos filhos para lhes beberem o sangue. Suportam tudo, tal como suportaram dar os filhos à luz. Pergunta como o fazem, essas mães com os filhos, como o fazem, como é que tu o fazes.”

 

Como é que o fazem? Como é que conseguem em condições tão violentas e indignas e no meio de tanta devastação exterior e interior. Como é que conseguem superar, é essa a questão que ressoa e nos faz ponderar e valorizar o que temos.

 

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

"três homens num barco (já para não falar do cão)" de jerome k. jerome :: Opinião


“Eramos quatro - o George, o William Samuel Harris, eu próprio e o Montmorency.”

Assim começa o relato desta viagem.

Existem várias viagens dentro desta viagem de barco, algumas delas são divagações de cariz filosófico, outras são crítica social, a maioria são autênticas digressões nas memórias de cada um dos três homens, em périplos alucinantes fruto de uma imaginação prodigiosa e ainda há espaço para servir de guia turístico pelas aldeias pictóricas nas margens do Tamisa e aproveitar para uma tacada política aqui e ali.

Portanto, temos um preguiçoso crónico hipocondríaco que se queixa do seu amigo insone e igualmente “doente” e ambos se debatem com outro amigo que, deprimido, dorme demais (já para não falar dos pés enormes que tudo atrapalham). Todos se sentem moribundos (menos o cão) e decidem que o rio e os ares aquáticos seriam o melhor remédio para todos.

“A maior ambição do Montmorency é meter-se de permeio e ser insultado. Se conseguir enfiar-se num sítio onde ninguém o quer, pôr tudo numa roda-viva, fazer com que as pessoas fiquem furiosas e lhe atirem coisas à cabeça, então ele acha que não perdeu o dia.”

Cedo concluímos que o ócio é o motor desta narrativa e o objectivo principal é simples: se não poder ajudar, atrapalhe. 🤭 O importante é participar! O mesmo se aplica ao cão, nas suas francas amizades com gatos e chaleiras fumegantes.

A maior ferramenta do humor de Jerome K. Jerome é a ironia e o sarcasmo e a intelegência com que narra episódios que roçam o absurdo e historietas do arco da velha que se tornam mais cómicas pela escolha da linguagem e o encadeamento que vão tendo com a própria aventura que era suposto ter o papel principal, mas desengane-se o leitor se pensa que isto é só uma viagem de barco!

É uma viagem pela natureza humana e as suas crises existenciais, num texto cheio de tiradas poéticas.

“(…) mas à noite, quando a mãe natureza foi para a cama e nos deixou acordados, oh! O mundo fica solitário e ficamos cheios de medo (…) Sentimo-nos tão desamparados e tão pequeninos no meio daquele grande silêncio, quando só se houve o rumorejar das árvores negras ao vento da noite. (…) Mais vale juntarmo-nos todos nas grandes cidades e acender grandes fogueiras de milhões de candeeiros de gás, e gritar e cantar em uníssono, e sentirmo-nos corajoso.”

No entanto, estes espíritos indolentes não procuram reparação ou redenção para os seus constantes elogios ao pecado do ócio e à doce contemplação do trabalho, esse bem precioso no qual é melhor não tocar; antes pelo contrário, eles tecem aqui quase um tratado de como continuar nessa vida mesmo estando cientes das tarefas laboriosas e dos caprichos das previsões meteorológicas que determinam o sucesso de uma actividade e vida ao ar livre e é isso que confere todo o lado cómico às peripécias pelas margens do Tamisa.

“Não existe sensação mais excitante do que a de velejar. (…) As asas do vento sibilante parecem transportar-nos sempre em frente, não se sabe para onde. Já não somos aquelas coisas de barro lentas, laboriosas, débeis, que se arrastam tortuosamente sobre a terra; tornámo-nos parte da Natureza. (…) Os seus braços gloriosos abraçam-nos e erguem-nos de encontro ao seu peito.”

Difícil é amarrar a tenda ao barco e não dormir ao relento. Saber se lhe colocam os espeques todos os não, bem como a hercúlea tarefa de pelar umas batatas ou lavar uma peça de roupa.

“(…) ora bem, o rio entre Reading e Henley ficou muito mais limpo depois de lá termos lavado a nossa roupa. Toda a sujidade contida no rio foi recolhida por nós durante a lavagem, e ficou retida na nossa roupa. A lavadeira de Streatley disse que tinha de nos cobrar o triplo do preço normal para lavar aquela roupa. Na opinião dela, aquilo não era propriamente uma lavagem, era mais uma espécie de escavação.”

Tá explicado porque J. não sofre de artrite de lavadeira!

Em suma, quase todos os relatos arrancam sonoras gargalhadas ao leitor, mas um dos episódios mais brilhantemente descritos e a ritmo de meter inveja ao restante livro, é o capítulo três, quase todo ele dedicado à perseverança e empenho do tio Podger e a sua capacidade para a bricolage. Mas também, o episódio do guisado irlandês ou o familiar que tenta aprender a tocar gaita de foles, são hilariantes. Ou a risota entre J. e George com a camisa que cai ao rio ou uma espécie de luta livre na manteiga entre George e Harris. (já para não falar do queijo capaz de matar só com o cheiro).

quinta-feira, 16 de setembro de 2021

«Silêncio na Era do Ruído» de Erling Kagge :: Opinião

No seu «Silêncio na Era do Ruído», Erling Kagge predispõe-se a pensar sobre o que significa o silêncio, onde e como o encontramos e como o sentimos. O silêncio tem muito de indizível e de abstracto, no entanto, há uma busca incessante pela sua definição. Aproximar-se-á da definição do «nada»? Ou define-se pela experiência de cada um?

Experimentando-o cada um à sua maneira, sem garantia de conseguir-se expressar sobre ele de forma concreta ou palpável, que o digam os inúmeros artistas que tentaram filosofar, sentir, pintar, encenar, musicar, escrever ou expor o silêncio. Também sobre eles, Kagge, de forma breve e rendilhada, os cita para fundamentar as suas ideias sobre o silêncio, que tanto procurou, fosse em caminhadas solitárias de 50 dias pela Antártica, fosse na rede complexa de esgotos e túneis, chafurdando noutra dimensão de Nova Iorque.

“Conhecendo-nos a nós mesmos, conhecemos os outros. Ao ler Sacks, sinto que ele, tal como Nansen, ao dirigirem os seus olhos para o alto, também os dirigiam para dentro, em direcção ao seu silêncio interior e também aos seus aspectos interiores esquecidos. Em direcção a esse universo que para mim é tão misterioso como o espaço que nos rodeia. Um universo expande-se para fora, o outro para dentro. Para mim, este último universo tem o maior interesse. Porque justamente como concluiu a poetisa Emily Dickinson; «O cérebro – é mais vasto do que o céu.»”

Silêncio está associado a resiliência, relutância, satisfação, como essa mesma satisfação está intrinsecamente associada a sacrifício e meta. Porém, o caminho e as suas etapas são mais proveitosas que só a meta em si, é nessa perseverança que algo transformador acontece e desperta no cérebro sensações de bem estar e paz interior. Se assim for, silêncio é satisfação por auto-conquista? Que som tem o silêncio? A do auto-reconhecimento e da compreensão?

É tão vasta a definição como a forma de atingi-la, porém é na simplicidade do silêncio que ocorrem conversas entre os nossos pensamentos, capazes de vencer medos, de fazer avançar ou recuar, superar o aborrecimento mais por saber parar e contemplar e não por alimentar a ânsia, tão socialmente aceite, de continuar a fazer mais e mais. Mais intenso. 

“(…) Rumi escreveu: «Agora permanecerei em silêncio, e deixarei o silêncio separar o que é verdadeiro daquilo que mente»”

Talvez se possa dizer que a melhor definição de silêncio e aquela que o indica como uma sensação de paz interior, um luxo e uma liberdade, que tanta falta fazem nesta Era do ruído agudizada pelas aplicações que viciam e que dão estímulos exteriores que nunca são suficientes e atuam segundo a máxima: partilho logo existo; embora essa partilha seja feita sem que cada um abandone o seu isolamento, por vezes tóxico e caótico.