sábado, 29 de julho de 2023

"A história de Roma" de Joana Bértholo :: Opinião

A história de Roma ou como foi que o nosso amor aconteceu? Se é que aconteceu mesmo. E quando acontece, o amor é sentido igual? Bate de forma igual?

Aqui, claramente que não!

Chuana (ou Joana) recém-chegada à complexa geografia de uma Buenos Aires milongueira e perdida na arte de chuchurrear e compreender os meandros da confecção e degustação do mate, faz um desvio para conhecer um homem pela arqueologia do seu quarto, sem, no entanto, perceber muito bem o enigma com o qual anda de mãos dadas na rua, festas e outros eventos por onde socializam como casal. E mais uma vez, é na caracterização das personagens e na densidade que lhe dá que a escrita de Joana Bértholo ganha todo o fôlego e reencontro o que mais gostei em «Ecologia», a forma de descrever os outros que é logo em si mesma uma relação com o outro.

“Orgulhoso e casmurro: são várias as recordações da tua fúria a pontuar a mesa com o punho. Tens prazer em exaltar-te. Chamam-Te conflituoso, mas não possuis a rigidez das pessoas conflituosas, apenas uma atração genuína pelo confronto. Falas de qualquer desconhecido com fel e de qualquer camarada com mel. És tribal. Eu penso em termos de planeta e tu em termos de clã. (…) Casamento da Irene e do Tomazzo, um senhor sentado ao teu lado, pergunta tu que fazes. Sem pestanejar, respondes que és talhante. Isso parece surpreender e cativar as pessoas na mesa, que ficam mesmerizadas a ouvir-te discorrer acerca dos distintos ângulos de corte de carne, o desmanche de uma peça ou o Segredo de um bom hambúrguer. Passo a refeição esquinar graçolas por ser a companheira vegetariana do talhante. Vamos embora sem que desfaças o embuste.

No calor de uma discussão, tu a dizeres que a verdade não interessa, só importa sermos honestos.”

E é em busca da honestidade para consigo mesma que Joana repesca as memórias e iludida ou não por essas mesmas memórias discorre uma narrativa quase diarística sobre um amor de difíceis contornos e uma Roma que não chegou a existir. Uma quase cidade que foi calcorreada apenas pelas expectativas e reflexões, muitas delas sobre a maternidade ou melhor dizendo, a não-maternidade


“(…) Grávidos, todos.
Alguém filma. Alguém me filma, de pé, a conter o pânico. A câmara persegue-me, eu tento escapar mas esbarro em barrigas. (…) Incapaz de olhar e de ignorar. A ferir-me e a nutrir-me com aquela imagem. Quero acordar, mas não consigo.
(…) Ao centro do círculo aparece um caixão com a forma de um enorme corpo nu de mulher, que se divide em dois como num truque reles de mágico de circo. O interior do caixão-corpo é azul e aveludado. Está cheio de bebés.”

A estranheza de alguns episódios retira o leitor do périplo turístico e do novelo romântico e é com eles que a narrativa ganho o outro fôlego, navega em águas mais turvas, mas os momentos de reflexão social sobre o papel da mulher-não-mãe são muito interessantes, lúcidos e até acutilantes, embora as arestas não apontem de dedo em riste. São reflexões-nuvem, pairam e dão fronteira aos diálogos do casal.

Independentemente de gostarmos ou não do enredo, partilharmos ou não, viagens e reflexões, o melhor deste livro é mesmo a forma como a autora nos apela aos sentidos e como demonstra o quanto as relações nos apuram ou atordoam esses mesmos sentidos.

“Não tenho dúvida de que esta ênfase na alimentação é uma forma de me ancorar e de lidar com a ansiedade que aquele reencontro tinha gerado. Contra essa ameaça, eu saboreio, o que une e arreiga. Cada pinhão, cada talo crocante, cada pedaço de pão chato mergulhado em molho ou coberto de condimentos, me ajuda a ficar na imediatez dos sentidos e a não me deixar apanhar pelos desvarios da mente, da memória ou da expectativa do que irá acontecer a seguir.”

Entretanto, na imediatez da expectativa fica o leitor, tal e qual amor não correspondido perante a impossibilidade de fechar certas histórias, mas até nisso está bem feito, pois quando um casal discute, ambos têm razão, mas nenhum está certo 😉

“Não negoceio: A viagem será sempre a melhor das minhas más decisões.”

E existem muitas formas de viajar!

terça-feira, 18 de julho de 2023

"O homem do ciúme" de Jo Nesbo :: Opinião

 

“A taxa de homicídios na Grécia e baixa. Tão baixa que muita gente se pergunta, como tal é possível num país em crise, com grande taxa de desemprego, corrupção e agitação social. A resposta espirituosa é que, em vez de matarem alguém que odeiam., os Gregos permitem que a vítima continue a viver na Grécia. Outra é que não temos crime organizado porque não somos capazes de organização necessária. Mas é claro que temos sangue quente. Temos o crime passional. E eu sou aquele que é chamado quando há suspeita de o ciúme ser o motivo por trás de um homicídio. Dizem que consigo cheirar o ciúme.”

Não sabemos se o ciúme tem cheiro, mas sabemos que Nesbo mete o leitor de nariz bem empinado, olfatando por culpados em cada esquina e com a cauda num frémito como pás de uma ventoinha.

Para o leitor com faro menos apurado ou sem aspirações para roubar o lugar ao inspector, o ritmo pode ir buscá-lo à «Black Dog» dos Led Zepplin e enquanto dá ao pezinho e lê desenfreadamente, cruza os olhos quando os sons se misturam e já o karaoke vai em «Happier» de Ed Sheeran quando os graves roçam a tortura emocional, causada pelo ciúme… mas a verdade é que ela está mais feliz.

Ou parece!

E aqui há muita coisa que parece mas habilmente não é! Por isso, os Led Zepplin retomam o palco e o riff  (que parece) menos harmonioso imita o batimento descompassado do coração do leitor perante alguns finais. Um coração que não sabe se martela e insiste como a pedaleira dupla duma bateria que acusa o ciúme como mote para tudo ou se, tal guitarra se deixa dedilhar e gritar consoante o tom de cada história.

Jo Nesbo agarra o leitor desde o primeiro conto e a morte cola-se-lhe à pele, daí em diante, a luta é entre a ansiedade, para afastá-la, e a atração para ela, como solução para tudo, o que não deixa de ser rebuscado quando misturado com ciúme, actualidade e justiça.

“O homem do ciúme” é um sortido fino de contos, polvilhados com um toque de malvadez, especiarias maceradas no ponto certo, humor refinado, uma pitada de inocentes e uma mão cheia dos culpados do costume, tudo muito bem embrulhado em dilemas intemporais e um laçarote bem repenicado que aponta o dedo aos temas actuais. 


sexta-feira, 7 de julho de 2023

Opinião "Ainda bem que a minha mãe morreu" de Jennette McCurdy

 Faz muito tempo que não me sento "aqui" para escrever.

As leituras andam pelas ruas da amargura e as opiniões, ui, reconhecem-se ausências de anos, menos regulares que aquele café que juramos combinar com aquela colega da escola secundária com quem (por sorte ou azar!) nos cruzamos na estação dos comboios.

Mas hey....aqui vamos nós!

"Ainda bem que a minha mãe morreu" não foi o único livro que li nos últimos meses (e anos!) de ausência aqui. Ainda bem!

"Ainda bem que a minha mãe morreu" foi um dos que nunca, nem por sombras, me viria parar à mãos por escolha própria. Foi o meu filho que disse "quero ler!" e eu pensei "ahhhhh, isto é alguma dica?!". 

Parece que não, era mesmo só um adolescentes com um olho no Tiktok e nas suas tendências. Eu acabei por o comprar, sem nunca ter ouvido falar da Jennette McCurdy e por mais que a leitura da contracapa me tenha deixado a pensar "Wow!", entreguei-o ao suposto leitor e nunca mais olhei para o livro.

Mas a curiosidade levou a melhor de mim e as pessoas que me enviaram um clip de uma entrevista no programa da Drew Barrymore também (vejam aqui)

Devorei este "Ainda bem que a minha mãe morreu" como se de ficção se tratasse, a arrepiar-me com as ações e reações de uma mãe manipuladora e doente e de uma filha que não conheceu outra realidade e assim cresceu condicionada. 

Dizia o Buzz (sim sou velha!), é "FACTO OU FICÇÃO?".

O que nos é contado não é ficção, é a vida de alguém, por mais que a Jennette não fosse conhecida no meu universo de trintona que nunca viu o iCarly, é chocante os episódios que vamos lendo sobre o seu crescimento, a relação da mãe com ela e com a restante família (especialmente o pai!), o desprezo por um caminho que nunca desejou seguir, uma total aniquilação da sua pessoa e as consequências nefastas de todos os fios que a mãe puxou na marioneta superestrela Jennette.

Ainda não terminei mas senti-me inspirada para vir escrever qualquer coisa. Nem que seja porque preciso de ganhar novo fôlego para continuar a leitura após tropeçar em 3 momentos de tradução que despertaram o Pat em mim.

(nota: o Pat de Guia para um final feliz  The Silver Linings Playbook do Matthew Quick)

NOTA: a capa/título gera sempre comentários e virares de cabeça das pessoas à nossa volta. E vejam lá se no vosso universo, a leitura deste livro não é uma dica a alguém.

Se for, então deviam mesmo ler.

Boas leituras!