sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

"Viagem ao coração dos pássaros" - Opinião


"Viagem ao coração dos pássaros" é o regresso ao universo transcendente recriado por Possidónio Cachapa. O livro não é recente, remonta sim a 1999, data da inicial publicação, sendo posterior a "Materna Doçura" que foi o romance por onde conheci o autor.

A forma, quase frágil, com que descreve a realidade dá-lhe uma aura meio irreal, meio mágica, mas cativante. Há um lado rude, mas natural do ambiente telúrico aqui descrito que balanceia e compõe o quadro onírico que o autor quer dar ao leitor. Nas suas palavras existe mesmo uma viagem. A que coração fica ao critério de cada leitor... penso eu!
Naquilo em que acreditamos e para o que estamos abertos, ditará muito o quanto podemos entender e aceitar a estória aqui narrada por Cachapa.

Haverá um certo culto por um universo mais mágico, acreditando em algo superior, nem que seja no poder da mente em nos levar a locais para além daqueles em que podemos estar. Talvez essa seja a melhor viagem.

Em "Viagem ao coração dos pássaros", existe uma viagem ao interior, ao rural, ao isolamento, ao temer aquilo que é diferente ou simplesmente pouco aceite e renegado. A ligação à terra traz alguns credos mais pagãos, que por norma o povo toma como existentes, mas nem sempre aceita de bom grado. Esse isolamento e desapego da comunidade por Evangelina e Maria Joaquina (Kika) são o mote para que o enredo cruze as fronteiras da realidade e possa ter contornes menos comuns.


Questiona-se o amor, o pecado, a vida e a morte e claro, o destino.
Os Açores são o pano de fundo, a pronúncia marca várias passagens e tem vislumbres de romance em tons nórdicos, de paisagens belas mas ásperas que mexem com os sentimentos e as ideias dos habitantes.
Fica ódio por quem parte e uma revolta por quem insiste em permanecer. Resta ainda o pesado silêncio que sobra e que marca bem a ausência.

Não se pense que apesar de isoladas Kika e a mãe estão totalmente sozinhas, não, Felipe, Loduvina, o Anjo, o Fura-Mundos e até o Homem Bala e a sua Trapezista compõem este desfile de personagens que dando apenas aquilo que possuem tentam acalmar e amparar a dor alheia.

E o Escritor? Como lá foi parar o escritor? ... aquele que sabe que o dia "(...) o dia é do domínio das coisas cruas e das arestas cortadas."

"Por maior que seja a insistência, de nada disto se falará aqui, porque foram acontecimentos menores, passados numa freguesia pequena, onde uma mulher, que carrega um Dom, viveu rodeada de seres passados (...) Que nos interessa que um escritor tenha um dia ousado falar disto e se tenha aproximado como um insecto nocturno (...). Por baixo das pedras talhadas existe areia, que veio de um ribeiro que já não corre, e por baixo dessa areia encontra-se terra. Uma terra escura e sufocada pelo peso das coisas que carrega, mas, ainda assim, terra. E por baixo de si, magma. E do magma não se passa, porque, ou se caminha para uma coisa transcendente, ou se morre tornado chamas (...)"


Uma edição MARCADOR, numa colecção Livros RTP.

2 comentários :

RS_Carvalho disse...

Fiquei curiosa em relação a este livro. Pronúncia e Açores referem-se à ilha de S. Miguel? Ou a história passa-se noutra ilha?

EfeitoCris disse...

Não é especificado, pelo menos não assim de caras, mas quem conhecer bem, acredito que identifique algo