terça-feira, 17 de março de 2020

«A história de uma serva» de Margaret Atwood :: Novela gráfica - Opinião



"Vendo que não dava à luz filhos a Jacob, Raquel começou a ter inveja da irmã e disse a Jacob: «Dá-me filhos ou, então, morro!»

E Jacob irritou-se com Raquel e disse-lhe: «Julgas-me capaz de substituir Deus, que te recusou a fecundidade?»

Ela respondeu: «Aqui tens a minha serva Bila; vai ter com ela. Que ela dê à luz sobre os meus joelhos; assim, por ela, eu também terei filhos.»"  
                                                                                                                                       Génesis, 30:1-3

Esta passagem da Bíblia é um dos pilares fundadores da sociedade de Gileade, uma estrutura ditatorial, apoiada no fanatismo religioso e numa segregação sufocante e violenta para as mulheres. Atwood idealizou e montou o romance «A história de uma serva», um relato igualmente sufocante e que lemos com nó na garganta. 

"Se o que estou a contar é uma história, então tenho controlo sobre o final. Haverá então um final para a história, ao que se seguirá a vida a sério. Posso recomeçar onde fiquei.
O que eu estou a contar não é uma história. (...)
Contar, em vez de escrever, porque não tenho nada com que escrever e, em todo o caso, escrever é proibido. Mas se é uma história, mesmo na minha cabeça, devo estar a contá-la a alguém. Há sempre mais alguém. (...) Querido Tu, diria eu. Apenas tu, sem um nome. Juntar um nome, junta-te ao mundo dos factos, que é mais arriscado (...) Tu pode até ser mais de uma pessoa.
Tu podem ser milhares."


Ler o romance escrito por Atwood e agora poder ver esta interpretação gráfica por Renée Nault permite dar outra dimensão às palavras já intensas da autora; as imagens captam muito bem a rigidez, a apreensão, o sufoco, a ameaça, o medo, mas também a vontade de fuga e resistência, a necessidade do toque, a constante denúncia e revolta; entre tantas outras coisas para as quais é difícil dar um só nome. 

Ver com atenção estas imagens, estáticas, tão diferente de ver o livro adaptado a série televisiva, acrescenta essa tal dimensão que refiro, podemos perder-nos dentro de muitas destas imagens tempos sem fim e ir ler e reler passagens que marcámos aquando da leitura deste diário, contado na cabeça da Serva June, não June, não, DeFred, já que não pode mais usar o seu próprio nome, ela já não é dela mesma, mas sim de um homem, de um líder, do Comandante.

"A noite é minha, um tempo meu, para fazer o que quiser, desde que em silêncio. Desde que não me mexa. Desde que fique deitada, imóvel. (...)
Estou deitada na cama, ainda a tremer. Se molharmos o rebordo de um copo e passarmos o dedo por ele, produz um som. É assim que me sinto: esse som do vidro. Sinto-me como a palavra estilhaçar
Quero estar com alguém."

A falta de contacto é em si uma forma de subjugação, as Servas nem no acto da Cerimónia devem ser tocadas pelo Comandante, ele apenas as deve possuir, a fim de depositar nelas a semente.

"Espero, lavada, penteada, alimentada, como um porco premiado. 
(...)
A cerimónia decorre conforme o habitual.
Deito-me de costas, completamente vestida com excepção da saudável roupa interior de algodão branco. (...)
Envolve-nos uma neblina de Lírio do Vale, um tanto fria, quase fresca. Não há calor neste quarto.
Acima de mim, (...) encontra-se Serena Joy, estendida. Tem as pernas abertas, eu estou deitada no meio delas, tenho a cabeça no estômago dela, a nuca em cima do seu osso púbico, ladeadas pelas coxas dela. Também ela está completamente vestida. 
Tenho os braços levantados; as mãos dela seguram as minhas. O que supostamente significa que somos uma só carne, um só ser. (...)
A minha saia vermelha está subida até à cintura, mas não mais do que isso. Abaixo dela, o Comandante fode. Aquilo que fode é a parte inferior do meu corpo. (...)
Serena Joy  aperta-me as mãos como se estivesse ela a ser fodida (...) e o Comandante fode, com a cadência de marcha regular dois-quatro, e assim continua como uma torneira a gotejar. (...)"

Poderia continuar com descrições, mas nada como pegarem na novela gráfica e irem descobrindo as imagens e lendo passagens correspondentes na narrativa. E melhor ainda, a Bertrand publicou recentemente «Os Testamentos» continuando assim a história de Gileade e a da Resistência. E é sobre isso mesmo este último excerto: a resistência, a esperança e o acreditar.

"Na penúria, uma pessoa é levada a acreditar em todo o tipo de coisas. Agora a credito na transmissão de pensamento, vibrações do éter, tretas dessas. Nunca tinha acreditado.
Também acredito que não o apanharam, ou que não o alcançaram, afinal de contas, que ele conseguiu chegar à outra margem (...) Imagino a roupa. É um conforto para mim vesti-lo com roupas quentes. Estabeleceu contacto com os outros, deve haver uma resistência , um Governo no exílio. Há-de haver lá alguém, a tratar das coisas. Acredito na resistência da mesma maneira que acredito que não pode haver luz sem sombra; ou melhor, não pode haver sombra a não ser que também haja luz. Tem de haver uma resistência, senão de onde é que vêm todos os criminosos, na televisão?"

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