quarta-feira, 2 de setembro de 2020

«Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos» de Olga Tokarczuk :: Opinião

 


"1
E, agora, tende cuidado!
Certa vez, tendo escolhido um Caminho perigoso,
um Homem justo caminhou com Humildade 
pelo Vale da Morte."

Em jeito de premonição assim começa «Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos», alertando para a Morte e trazendo consigo uma conclusão: o caminho pernicioso com que o Homem tem marcado a sua passagem pela Terra terá de ter os dias contados. A Natureza é divina e superior e precisa reafirmar a sua posição. 

"(...) São as estrelas e os planetas que estabelecem a ordem, o céu é o padrão segundo o qual surge o modelo da nossa vida. (...) Nada será capaz de escapar a esta ordem.
É preciso ter olhos e ouvidos bem abertos, associar os factos. Ver semelhanças onde os outros só vêem diferenças (...) E, ainda, não esquecer que o mundo é uma grande rede, um todo, e que não há nada que exista isoladamente. Que todo o fragmento do mundo, incluindo o mais pequeno, se encontra ligado a outros de acordo com uma complicada Correspondência Cósmica, difícil de deslindar pelas mentes comuns.
(...) A sua geração tem Plutão na Balança, o que enfraquece a capacidade de estar alerta. E acham-se capazes de equilibrar o inferno, mas não creio que o consigam fazer. (...) A realidade envelheceu, tornou-se senil, pois está sujeita às mesmas leis que todos os organismos vivos - o envelhecimento. Tal como as células do corpo, os seus componentes mais pequenos, os sentidos, também sucumbem à apoptose. A apoptose é uma morte natural, causada pelo cansaço e esgotamento da matéria. Em grego, a palavra significa «queda das pétalas». O mundo perdeu as suas pétalas."

A mensagem final é clara, mas a forma como a Prémio Nobel encontrou para conduzir o leitor é extremamente rebuscada e genuína pois encontra a sua voz na narradora Janina Duszejko, uma anciã que questiona o autismo testosterónico masculino, a tristeza genuína da Natureza e vê tudo tendenciosamente negro e meio desfocado como se olhasse a realidade por um caco de vidro fosco, orientado pelo alinhamento dos planetas e as cartas astrológicas que lhe permitem conhecer as pessoas e os eventos à sua volta.

"Tenho de tomar cuidado. Só agora me atrevo a confessar: não sou grande astróloga, infelizmente. No meu carácter existe um certo defeito, que tende a obscurecer a imagem da configuração dos planetas (...). Vejo como nos mexemos às cegas num perpétuo Crepúsculo. Vejo-nos como escaravelhos capturados em caixas por uma criança cruel. É fácil danificar-nos, ferir-nos, despedaçar a nossa existência extravagante e engenhosamente fabricada. Tudo isto eu interpreto como anormal, terrível e ameaçador. Só vejo Catástrofes. Mas se, no início, está a Queda, será possível cair ainda mais abaixo?"

É sem dúvida um livro extravagante, recheado de pequenas pérolas que conquistam o leitor, seja pelas considerações ou as brilhantes descrições da natureza envolvente e até as análises astrológicas que confundem o leitor. Mas superior mesmo é a condução do enredo por uma terra pedregosa e fria, onde a luz da lanterna que alumia a Escuridão se vai extinguindo fechando assim o ciclo da premonição inicial, a inevitabilidade da Morte!

Excertos:

 "Tenho uma Teoria. Acredito que aconteceu uma coisa terrível: o nosso cerebelo não foi devidamente ligado ao cérebro, e esta talvez tenha sido a maior falha da nossa programação. Fomos mal concebidos. Por conseguinte, o nosso modelo deveria ser substituído. (...)
Temos um corpo que é como uma bagagem incómoda. (...) A única Ferramenta, tosca e primitiva, com que nos brindam à laia de prémio de consolação foi a dor."

"- Podereis argumentar que não passa de um Javali - continuei. - Mas que dizer daquela enxurrada de carne que vem do matadouro e cai diariamente sobre a cidade como uma incessante chuva apocalíptica? (...) O mundo é uma prisão cheia de sofrimento, construída de modo que, para se sobreviver, seja preciso infligir dor a outros. Ouvistes? (...) desiludido com o que eu estava a dizer, se pôs a trabalhar; por isso, passei a dirigir-me apenas ao Caniche: - Que mundo é este? Um mundo transformado em almôndegas, salsichas, em tapete estendido junto à cama, em caldo feito de ossos de outro ser..."

"- Que vai ser de nós? - perguntou dramaticamente.
- Tem medo que os Animais nos matem também a nós?
Estremeceu.
- Não acredito na sua teoria. É absurda.
- Pensei que a senhora, como Escritora, tivesse imaginação e capacidades visionárias, e não se fechasse a ideias que, à primeira vista, possam parecer improváveis. Devia saber que tudo o que somos capazes de imaginar é uma imagem da verdade - concluí, citando Blake (...)"


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