"Aaliya, a sublime, a louca."
Aaliya, a mulher desnecessária. Aaliya a mulher não religiosa, mas crente no poder dos livros, na salvação pela palavra, pela Literatura.
Aaliya a caprichosa, a rebuscada, a livreira, a tradutora, a mulher desemparelhada do seu tempo, da sociedade que a envolve e ainda assim uma mulher tão necessária ao futuro irreconciliável entre realidade e ficção.
"Gosto de homens e mulheres que não encaixam bem na cultura dominante, ou, como Álvaro de Campos lhes chama, estrangeiros aqui como em toda a parte, casuais na vida como na alma. Gosto de outsiders, fantasmas a errar em salas cobertas de teias de aranha no castelo maldito de ter que viver."
"Incomodou-me, a vida toda, eu não ser igual a toda a gente. Durante anos, consegui convencer-me de que era especial, de que ser diferente era uma escolha. (...) Sou única, um indivíduo, não simplesmente idiossincráticas, mas extraordinária. Considerava o meu individualismo uma virtude, que me protegia e estados de espírito colectivos e insanidades, que me ajudava a elevar-me acima das correntes rápidas da família e da sociedade. A ideia reconfortava-me. Só que agora não está a resultar. E não é só de agora. Já lá vai algum tempo que não consigo muralhar o meu coração como deve ser. (...)Não me saí tão bem como Gustave. Os meus muros não são estanques. Ao longo dos anos, surgiram brechas irregulares. (...)Pessoa, que conhecia a alienação ainda melhor do que Flaubert, escreveu: «Mais terrível do que qualquer muro, pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros.»Que dom para as palavras tem este poeta, que domínio das imagens."
Que dom tem também Rabih Alameddine para escrever como se fosse uma mulher, ler-lhe a alma e as ânsias, expondo particularidades e a solidão numa extensão incrível que nos deixa boquiabertas perante tal transparência e intensidade. Domínio tem também de um enredado de citações, referências, livros, quadros, poemas, filmes e tanto mais que torna este livro um manual de consulta obrigatória, para além de brindar o leitor com uma personagem fabulosa que é esta tradutora não oficial, uma mulher que se muralha e resguarda na melodia do árabe, trabalhando assim livros intemporais que são a sua melhor companhia.
"Não há nostalgia tão intensa como a saudade do que nunca existiu."
Este livro está pejado de solidão e de pequenas esperanças que morrem muito cedo, deixando um vazio assustador que quase parece obrigatório à condição feminina naquele colosso geográfico condicionado pela sociedade patriarcal e o esmagamento pelas tradições religiosas, a Beirute muçulmana para uma mulher com mais de setenta anos, no entanto Aaliya, a resiliente, contraria o obstrucionismo enraizado e persiste no inútil, pensando e citando Pessoa.
"Ora, poderão querer saber porque é que me empenho tanto nas traduções, se depois as encaixoto (...). Pois bem, o meu empenho prende-se com o processo e não com o produto final (...)Mas não só. No Livro do Desassossego, Pessoa escreve: «A única atitude digna de um homem superior é o persistir tenaz de uma actividade que se reconhece inútil, o hábito de uma disciplina que se sabe estéril, e o uso fixo de normas de pensamento filosófico metafísico cujo a importância se sente nula.»"
É sem dúvida um desassossego que sentimos a certa parte deste livro ao acompanhar a vida desta mulher, que ao sabor dos seus relatos, nos revela o passado e, tudo num espaço de poucos dias perto do final do ano, quando, por norma, acaba uma tradução e há a euforia de escolher um novo projecto para começar mais um novo ano. Mas o desassossego maior chega com um acontecimento, uma viragem, um encerrar de um capitulo, uma cena muito intensa, palpável, rica em imagens e cheiros, que sendo levada a palco, ali, acontecendo debaixo dos nossos olhos, arrancaria, por certo, lágrimas aos espectadores.
"A minha alma é um brinquedo e roer do destino. A minha sina persegue-me como um batedor experiente, como um caçador malévolo, morde-me e não me larga. Encontro outra vez o que eu pensava ter deixado para trás. Serei sempre um fiasco, no passado, no presente e para sempre. Falhar outra vez. Falhar pior*. Assisto ao desmoronamento da minha vida.
*(Nota da tradutora Tânia Ganho)
Alusão às famosas palavras de Samuel Beckett: «Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor»
Com esta palavras encaminhamo-nos para o fim do livro, mas também pesando o lado redentor dos livros e o ressignificar das memórias.
Um livro poderoso!
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