MORRESTE-ME, Sandra Barata Belo ... a peça!
Talvez seja curioso, mas desde o dia em que me disseram vamos ver a peça que está no Teatro do Bairro? Que eu disse, vamos! Não sabia ao que ia, mas... Os anúncios à peça prometiam e a divulgação era enorme. Mas mais ainda por se tratar de uma adaptação ao livro "Morreste-me" de José Luís Peixoto. Não que eu o tivesse lido, mas já tinha ouvido falar do mesmo e como, há muitos anos vi uma adaptação de "Antídoto" e adorei, não havia nenhum motivo para não apreciar esta.
Eu tive em mãos para leituras, esta edição, da Temas e Debates (4ª edição, capa vermelho escuro), que tive a sorte de encontrar na Biblioteca Municipal de Alverca ;) mas para quem quiser ouvir
"Pai. A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz. E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo."
Não começa assim, mas podia começar!
Quem perde sabe que as pessoas que amamos ficam, ficam em tudo, ficam nas coisas em que tocaram, naquelas que construíram para nós, ficam nos locais por onde passámos juntos, as pessoas que amamos continuam a viver lado a lado com a gente, senão todos os dias, pelo menos grande parte, tal como uma parte nossa que morre com elas, talvez a parte que lhes pertencia, a que eles, aqueles que nos amavam, ajudaram a construir.
"Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei
ouvir. A tua voz calada para sempre."
E orientou-se muito bem! Sandra Barata Belo teve uma excelente interpretação. Todo o seu corpo falava, todos os seus gestos nos arrepiavam... os movimentos que quebravam o apelo ao sentimento, encaixotando-o... catalogando-o! ... e, ao mesmo tempo um desespero disfarçado de garra, um destino onde as sombras, a solidão e as memórias vagueavam junto a quem perdeu e precisa de continuar.
"E pensei não poderiam os homens morrer como morrem os dias? assim, com pássaros a cantar sem sobressaltos e a claridade líquida vítrea em tudo e o fresco suave fresco, a brisa leve a tremer as folhas pequenas das árvores, o mundo inerte ou a mover-se calmo e o silêncio a crescer natural ..."
Curiosa comparação!
Não poderíamos todos nós morrer como morrem os dias!? Aliás, não morreremos todos um pouco ao final de cada dia!? Ou será o sono uma passagem? Ou será a vida, mais tranquila, mais simples... que acompanha o fim de casa dia, essa vida já mais fria, já mais em tons lusco fusco, já mais húmida e com cheiro a terra molhada, a vida que passa de fininho e a gente nem a vê!?
Será a vida um hino à morte!? À morte aos pedaços, à morte lenta e pequena de cada dia!?
Curiosamente, todos os últimos livros que tenho lido retratam a morte, retratam o valor da vida, a importância de estar vivo, mas também a de estar morto e o impacto a morte nos que cá ficam vivos.
A complexidade e o enredo de sentimentos e sensações que a morte e a vida depois de lidar com morte englobam é excelentemente bem representada tanto pelo texto de José Luís Peixoto, como por todo o composto que foi a interpretação, os cenários, a música, o figurino... mas mais ainda, a fotografia, a luz e as sensações, sabores, cheiros e temperaturas que a peça conseguiu atingir.
O jogo se sensações criado, conseguiu mexer ainda mais fundo, conseguiu entranhar ainda mais a terra debaixo das unhas, a humidade e o frio da campa, ou o peso e a opacidade de empacotar os dias e os sentimentos...
E poderia continuar aqui a subir o pano, mas acredito que valha mais a pena ir lá e ver, cheirar, sentir e, se for caso disso, chorar!
Mas agora vá, arrume-se e orienta-se:
"Vou. Avanço, avanço e regresso. E cada quilómetro, um mês, e cada metro, um dia. Avanço para o que fomos. (...) onde cada quilómetro em frente é um mês que recuo."
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