Estranhos prazeres estes de ler livros e ver filmes cujo uma certa bizarria pauta grande parte da acção. É o caso de «Crash» de J. G. Ballard, tal como já tinha sido o de «Arranha-céus», onde o narrador se vê envolvido em acontecimentos visionários que exploram possibilidades derradeiras e colocam em cenários de violência os seus intervenientes. «Crash» não é excepção, antes pelo contrário é a obra mais destacada e chocante de Ballard pelo conteúdo erótico e exploratório do corpo humano brutalmente danificado pelos acidentes de viação.
Originalmente publicado em 1973 e adaptado mais de vinte anos depois por David Cronenberg, o conteúdo brutal deste enredo continua, ainda hoje, a surpreender e a explorar os limites da dependência de objectos como forma de potenciar ou promover as relações humanos.
"Após a sua última tentativa para matar a minha mulher, a Catherine, percebi que o Vaughan se tinha finalmente refugiado na sua própria mente. Nesse mundo vibrante dominado pela violência e pela tecnologia, ele estava agora a conduzir eternamente a cento e sessenta quilómetros por hora numa autoestrada vazia, (...) Na sua mente, o Vaughan via o mundo inteiro a morrer num acidente automóvel simultâneo, milhões de veículos a embaterem uns contra os outros numa amálgama final de ejaculações e líquido de refrigeração."
O caos dos corpos e do metal, num misto de superfícies amolgadas e marcadas pelos desastres, encaminharão as diversas personagens para outros desenvolvimentos não menos marcantes. Maioritariamente guiados pelas ideias de Vaughan, um homem perturbado, mas igualmente desafiante e de postura vibrante, capaz de reunir à sua volta um grupo de mentes perturbadas, recheadas de desejos de sexo e dor.
"Em muitas fotografias (...) via-se a imagem de um travão de mão, por cima do grande plano de uma vulva profundamente lesionada estava a imagem do centro do volante com o respectivo símbolo do fabricante. Estas confluências entre órgãos genitais lacerados e partes de carroçaria e painéis de instrumentos formavam uma série de módulos perturbantes (...)
Aqueles ferimentos pareciam autênticas iluminuras, quais manuscritos medievais, com os pormenores dos frisos do painel de instrumentos e das buzinas(...)"
As fotografias, as filmagens, a repetição dos acidentes são igualmente formas de excitação às quais recorrem para recriar fantasias. Tanto Vaughan como Ballard, o narrador, permitem-se a entrar em fantasias que evoluem numa espiral de violência e decadência, um por estar a atingir o seu limite de demência e o outro por estar a explorar a sua curiosidade mórbida.
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Um livro ELSINORE
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