sexta-feira, 17 de novembro de 2017

«O Livro dos Homens sem Luz» de João Tordo - Opinião


«O Livro dos Homens sem Luz» explora a solidão e o desdobramento do homem em vários, seja em episódios de alucinação e loucura, seja em sonhos ou pesadelos, mas a verdade é que encontramos nestas páginas pessoas que se fragmentam em função das memórias, absorvendo dores que parecem não ser suas e, que ainda assim condionam as suas decisões e dias. 

Funcionando como um todo, unido por uma linha que conduz à auto-tortura, a uma certa demência e à constante solidão, encontramos quatro personagens essenciais e distintas, que pela força do que os atormenta, cruzam-se ao longo da narrativa. 

Num primeiro espaço, em «Diários de Londres», vagueamos com David por outras vidas tão sós quanto a sua, incapazes de perceber o verdadeiro sentido daquilo que procura quando escreve e para quem escreve, já que sabemos que o faz forçadamente por trabalhar para Roy, que desconhecemos e não sabemos se é inventado na sua cabeça perturbada e em luto. Aliás, fica-nos até a dúvida de o luto ser igualmente verdadeiro. Porém, em «Insónias» dá-se uma reviravolta que nos faz voltar a este primeiro momento, olhando-o com outra realidade.

"O que aconteceu foi que o tempo passou e, um por um, os dias chegaram e partiram. O tempo passou, indiferente, moroso, e eu passei com ele, e assim fui esquecendo. Esqueci o trabalho em primeiro lugar, tarefa muito mais fácil do que teria julgado. Não é possível negar que trabalhar para Roy não tivesse sido, a certa altura, um verdadeiro prazer. (...) Mas, ao mesmo tempo, esse é um mundo impossível de sustentar, no qual não se pode viver em estado lúcido, porque é como uma embriaguez constante que aturde os sentidos, que esbate os contornos de todas as coisas, que induz a maravilhosa fantasia de pensarmos que a vida está fora de nós."

Esta fantasia está ainda mais patente no relato seguinte, «Soterrados», em que Helena e Joseph se deparam com a a vida a acontecer com eles fora de cena e no entanto, a vida que lhes acontece num espaço exíguo e carregado de opressões consegue ser ainda mais opressivo fruto das transformações de ambos; ele embrutece mais com ela, mas rende-se e ela, usa a sua fragilidade para se adaptar e cuidar dele. É um relato estranho, sofrido, dono de uma densidade sufocante, onde esperamos a salvação ou o fim rápido que termine com o definhamento do casal.

"Mas mesmo Helena não era imune à tentação do esquecimento. Havia uma força invisível que por vezes a chamava, sobretudo nas longas horas em que, enconstada à parede junto das escadas, sem conseguir ver Joseph através do negrume, sentia que o andamento do mundo tinha sido cancelado e que ela era a última sobrevivente. A terra era um lugar vazia e o último homem encontrava-se preso num abrigo subterrâneo. Nesses momentos de solidão - uma solidão tão potente e irrevogável que julgava ouvir vozes à distância - parecia-lhe que o único destino possível era extinguir a luz e deitar-se sobre o colchão, onde se abandonaria. Parecia-lhe que o único final era apodrecer."

Irrevogáveis são também os efeitos da solidão e do abandono a que as personagens pautam o seu destino, vivendo num esquecimento e torpor que mesmo assim não esconde a escuridão da dor.

«A memória é a forma mais precária de documentação porque morre quando aquele que relembra morre, é como se a vida fosse o documento de si própria – uma vida que, a cada momento, se esquece de si.»


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