segunda-feira, 25 de outubro de 2021

«Laços» de Domenico Starnone :: Opinião


«Laços» de Domenico Starnone (Alfaguara, Junho 2018), inédito em Portugal até este livro, recebeu no ano passado a adaptação cinematográfica, «Laços de Família», filme de Daniele Luchetti que não recebeu críticas equiparáveis às tecidas ao livro, no entanto, saber da sua estreia em Portugal fez-me querer recordar este enredo e a releitura foi ainda melhor do que o primeiro contacto com esta família disfuncional, cujo a relação segue caminhos sinuosos após o abandono (e regresso!) por parte de Aldo, o pai e marido adúltero, após um caso com uma mulher mais nova. 

As fragilidades do enredo prendem-se com um lado banal das acções do casal: ele vive deslumbrado por Lídia e agradecido por ela olhar para ele, sentindo-se mais vivo do que nunca e Vanda encarna o papel de mulher traída da forma mais acérrima e tóxica possível, desgastando-se e desfigurando-se enquanto recorda o quanto hipotecou de si em prol do casamento e dos filhos. No entanto, é precisamente a forma como Starnone passa dessa banalidade, de forma muito simples e concisa, para as motivações que fazem girar este casal que torna o livro duro e brilhante. É como se o autor fizesse um raio-x ao lugar mais fundo e íntimo dos pensamentos destas quatro pessoas enquanto as décadas avançam e isto apenas em pouco mais de cem páginas. A capacidade de tecer toda uma cena, de anos, num pequeno parágrafo é de um poder de concisão que espanta e abana o leitor.

“Disparataste longamente, com pedante tranquilidade, acerca dos papéis dentro dos quais nos tínhamos aprisionado ao casarmo-nos – o marido, a mulher, a mãe, o pai e os filhos – e descreveste-mos – a mim, a ti, aos nossos miúdos – como engrenagens de uma máquina desprovida de sentido, obrigadas a repetir para sempre, os mesmos movimentos sensaborões.”

“As pernas sobem agora com base em hábitos adquiridos. E a tensão, a emoção, a felicidade do passo perderam-se, como se perdeu a singularidade da maneira de andar. Deslocamo-nos achando que o movimento das pernas é nosso, mas não é verdade, sobe connosco esses degraus uma pequena multidão à qual nos adaptámos, a segurança das pernas não é senão o resultado do nosso conformismo. Ou mudamos o passo – concluis – reencontrando a alegria do início ou ficamos condenados à normalidade mais soturna.”

Tudo nesta narrativa ganha outro impacto pelas palavras que são escolhidas, ci-rur-gi-ca-men-te e com uma precisão geométrica, não vá a palavra errada estragar o pouco equilíbrio que sobra ou arruinar uma pequena conquista. E ruina é bem o que se analisa com o final entregue às mãos dos filhos: Sandro e Anna. 

“Olhei-os demoradamente. As crianças empurravam-se, insultavam-se, a mãe ameaçava-os. Levava um sobretudo fora de moda, eles calçavam sapatos deformados. Pensei: é a minha família a voltar do esquecimento, e vi de repente o meu lugar vazio ao lado deles, convenci-me de que tinha sido aquele vazio a modifica-los daquela maneira.”

Dito de forma disparatada ou não, a verdade é que Aldo tece desde o início palavras chave que determinaram a relação familiar: o conformismo, o casamento castrador, os filhos como extensão necessária de um casal, um repetir de movimentos que esmaga vontades e alegrias e o aprisionamento que são os anos que ainda lhes faltam. E aqui importa salientar que os que sobram e actuam como espelho são os filhos, levantando questões como: numa família tem sempre de existir o carrasco e a vítima? De que forma os papeis se invertem? E para a plateia (os filhos) o que sobra? Com os anos nada mais se acrescentar a não ser o cansaço?

"Agradava à Lídia, agradava a toda a gente. E, enquanto isso, uma névoa ia cobrindo o passado em que me sentira lento e inconsequente. Desvaneceu-se a casa de Nápoles, desvaneceram-se os parentes, os amigos. Permaneceram vivos, persistentes, a Vanda, o Sandro, a Anna, mas só enquanto a distância não lhes retirasse a energia, não retirasse espessura à dor."

Esta ideia da espessura da dor versus a distância e a invisibilidade é muito interessante e explorada mesmo quando o casal habita a mesma casa e envolve ainda outra questão: a do corpo estranho. É só o corpo da amante que é um corpo estranho ou os anos e a habituação ao corpo do outro também nos fazem estranhar um corpo que já não vermos? Quando é que o outro se torna invisível? 

Oscilamos entre considerar uma família como um laço constante, apertado e que protege; para a considerar um somatório de jeitos que se dá para unir vários fios, com gestos automáticos e de olhos fechados, gestos já sem sentido. Dinâmicas inofensivas que roçam a ameaça.

"Sinto o meu pai e a minha mãe. Sinto-os pelas divisões silenciosas, juntos e separados. O Sandro murmurou: esconderam-se um do outro, mas não sem deixarem a ameaça de se descobrirem a qualquer momento."



sábado, 16 de outubro de 2021

«A Casa» de Emma Becker :: Opinião


“Falo de um mundo onde as prostitutas podiam escolher ser princesas, elfos, fadas, sereias, meninas ou mulheres fatais. Falo de uma casa que ganhava as dimensões de um palácio, a doçura de um porto de abrigo. Agora, o resto do mundo é, para estas raparigas, um matadouro.”
“Dois anos imersa num mundo onde elas se farejam da cabeça aos pés, e continuo a corar quando uma rapariga me beija o rosto.
(…) E, contudo, quando estava mergulhada entre as pernas dela a lambê-la, com um apetite pouco fingido, pensava naquela carícia banal na perna e imaginava o que poderia levá-la ao orgasmo e se ela tivesse sabido como o fazer comigo, que sítios tocar, que linguagem inventar para insuflar de novo esse arrepio de vida na carne."

Emma Becker, vinte cinco anos, recentemente chegada a Berlim, é a francesinha de serviço num bordel aconchegante que protege as suas mulheres e que elas carinhosamente apelidam de A Casa. Becker é autora e narradora desta experiência na primeira pessoa, já que por curiosidade e gosto por sexo, decidiu prostituir-se na Alemanha a fim de expor este mundo pela perspectiva mais pessoal de cada uma das suas companheiras. Desse trabalho sob disfarce resultou um livro, quase como um herbário: uma forma de as alfinetar como borboletas para mais tarde as contemplar. Um livro que é uma declaração de amor às mulheres, aos seus corpos e às suas vontades e a tudo o que a experiência lhe permitiu aprender.

“Antes de mais, há os saltos: ninguém conseguiria andar naquilo, eu certamente não. Contudo, parecem uma extensão tão natural da sua perna como um pé descalço. E aquele barulho, aquele estalido langoroso, ao longo dos dez passos, para lá e para cá, que lhe delimitam o território... ouvindo-os, sabemos que aquele ritmo sábio não pode ser produzido por uma rapariguinha cambaleante, ameaçando torcer os calcanhares - por detrás daquele som há sem dúvida uma mulher agressivamente sedutora, cheia de si própria.”

Percebemos desde cedo a fascinação de Emma pela Casa, seja por comparação à prostituição de rua, seja por outras casas, mas sempre mais pelas mulheres que lhe dão corpo e os objectos que compõem os quartos, tal cenário de uma peça, previamente encenada. Tudo terá um certo valor sentimental, embora o que mais interesse sejam os episódios que penetram nesses cenários.

“Penso sempre: eis mulheres que são verdadeiramente mulheres, que mais não são, de facto, do que isso. Eis seres eminentemente sexuados, passíveis de serem definidos sem qualquer problema. Se houvesse nelas o que quer que fosse de ligeiramente ambíguo, tal duplicidade ficaria imersa no excesso de ornamentos e feromonas com que saturavam aquele canto (…).”

“A junção destes dois aromas perenes tem algo de infantil e obsceno, como se farejássemos a roupa de um bando de colegiais, escondidas na casa de banho para fumar… e, nos espaços que elas enchem de gritos, pulverizou-se uma essência um pouco ordinária, entre o detergente e o desodorizante barato, queimaram-se cinco incensos diferentes numa tentativa infrutífera de dissimular o fumo, as axilas húmidas e os dedos pegajosos de homens que estão sempre de passagem; é uma nota um pouco acre, quase indiscernível.”

O sentimentalismo é posto de lado, tudo assume um tom prático, mas o êxtase vem da forma como é descrito, sempre bastante visual, sensorial e até luxuriante. No entanto, o enredo fica um pouco a dever ao ritmo, pois para além de alguns episódios que oscilam entre recordações de amores antigos e situações com clientes no bordel, o que o leitor mais experimenta são manifestos de afirmação, usando o tom explícito a favor daquilo que defende: o valor das escolhas a que cada uma tem direito e a exaltação (e compreensão) pelo desejo que se alimenta em corpos que não as alugam à hora. Ou seja, há desejo para além da prática daquela actividade profissional.

“Aquele que não fode. Aquele que vem apenas beijar religiosamente aquela coorte de vaginas morenas, loiras, ruivas, rapadas ou hirsutas, que enche o seu herbário de mil clítoris com desenhos sofisticados de catedrais, cheiros de vaginas e de rabos, e do qual nem suspeita que se alivia nas casas de banho com uma dança febril de punho.”

Um arrepio sente o leitor em alguns capítulos, que mesmo retirados do contexto, funcionam muito bem como pequenos contos, brindam à lassidão, às mulheres e à diferença, mas também contêm análise sociológica à profissão, aos clientes e aos motivos que sustentam uma das profissões mais antigas, nunca escondendo uma indolência, um tom de humor e o respeito pelo tema; o fio condutor é a qualidade literária de um enredo que pretende humanizar a prostituição e fazer pensar sobre grandes questões, a da motivação de ambos os lados.

“Será que alguma vez se para de verdade? Que acontece a esta sensação na boca do estômago, quando ouvimos alguém pronunciar, seja por que razão for, a palavra puta? Deixamos de ser capazes de discutir objetivamente sobre prostituição… e, de resto, trata-se de uma discussão a evitar, se não nos queremos trair graças a uma veemência irreprimível.”

“O verdadeiro problema é o tempo. Que se pode, contra o tempo? Talvez face a esse inimigo supremo, invisível, invencível, os homens saquem da arma do bordel como um pecado menor, mais desculpável, do que uma história de amor paralela, mais desprezível também, porventura. O bordel é a parte da humildade inexorável da sociedade… o homem e a mulher reduzidos à sua mais estrita verdade… a da carne, que saboreia, sente e estremece.”

sábado, 9 de outubro de 2021

«NADA» de Carmen Laforet :: Opinião

«NADA» de Carmen Laforet narra o despertar de Andrea numa Barcelona enegrecida e depauperada pelos anos do regime franquista que se entranhou desmedidamente na parte da família que a recebe e que é suposto educá-la.

"Sem pensar duas vezes, lancei-me na escuridão das ruelas que a rodeiam. Nada podia acalmar e maravilhar a minha imaginação como aquela cidade gótica. Naufragando entre húmidas casas construídas sem estilo no meio das suas veneráveis cantarias, mas às quais os anos tinham dado uma pátina de um encanto especial, como se tivessem sido contagiadas pela beleza. (...) O frio mais intenso, engavetado entre as ruas sinuosas (...). Havia uma solidão impressionante como se todos os habitantes da cidade tivessem morrido."

Entramos neste belo e terrível romance, como o caracterizou Mário Vargas Llosa, e somos desde cedo confrontados com uma assumida tristeza que quebra a energia inicial com que Andrea chega e percorre uma Barcelona nocturna e húmida, mas que ainda assim a conquista e liberta, uma liberdade que demorará até voltar, já que o desalento com o cenário familiar bizarro, que a recebe é composto por pessoas em ruínas, destruturadas e tóxicas que nos recordam os ambientes confusos, violentos e de terror dos enredos de Shirley Jackson ou os mais melancólicos e pesarosos de Carson McCullers.

A decrépita casa da Rua de Aribau é tal como a tia Angústias, “um bocado vivo do passado que estorva a marcha das coisas.” e  “Os dias sem importância (…) pesavam como uma quadrada pedra cinzenta no cérebro.” de Andrea, que se entregou à inércia dos dias inúteis. E são precisamente nas descrições dos  dias inúteis e povoados de Nadas que Laforet domina as emoções dos leitor e nos cerca com esse ambiente. A atribuição de cheiros à nostalgia e à solidão ou até à humilhação conseguem uma dimensão ainda maior para a dor e o abandono, que desafiam a "sombra gelada da tarde (…) uma tarde de luz muito triste.", como muitas tardes em que Andrea vagueia, salvando-a apenas um reduto de Natureza e a amizade com Pons e Eva.

Já os tios são personagens em constante devaneio, seres soezes, ordinários e agressivos, que encontram na violência e na humilhação, uma forma de expiarem dos demónios que os corroem, ainda assim são dignos de uma incompreensível estima e até carinho que gera uma repulsa, extensível à tia Angústias no que toca à capacidade de ferir os sentimentos alheios. Até a avó, essa última folha* de uma árvore já extinta, cujo os ecos ainda ressoam e vibram nos sentimentos de todos, sobretudo em Glória. 

*”(…) tive a sensação de estar perante uma daquelas últimas folhas de Outono, mortas na árvore, antes de serem arrancadas pelo vento.”

Arrancados, desenraizados e desbragados são tanto os personagens como as discussões bafientas que alimentam esta estranha relação familiar, que vive de argumentos já gastos: “(…) como pássaros envelhecidos e escuros, com os peitos palpitantes por terem voado muito num pedaço de céu muito pequeno.”

Um pedaço de céu muito pequeno é a casa, também ela personagem. Acozinha, a sala, as escadas ou até o quarto-orelha, todo "funciona" como um conjunto desconexo e grotesco em que tantos os rostos vazios habitam a casa, como a própria casa os habita a eles e os ocupa com a revolta e o esforço que sobrou de um passado recente e marcante. A casa, a rua e a própria cidade, outrora como eles, seres dignos de destaque, sobrou em escombros e sombras, sendo metáfora para a critica social que se lê nas entrelinhas. 

Contracenam com a desolação dos trastes inúteis, acabrunhados sob uma carga de desvario, uma amizade propícia a novos despertares dessa mulher-menina que é Andrea ainda que mergulhada em ilusões e sonhos do campo e que reverdece a cada reencontro com pedaços soltos de natureza naquele poço gótico que era Barcelona.

terça-feira, 5 de outubro de 2021

«Dor» de Zeruya Shalev :: Opinião


Li «Dor» de Zeruya Shalev depois de ter lido «O desassossego da noite» de Marieke Lucas Rijneveld e é brilhante ver como os livros se completam e as leituras se cruzam, quase dando respostas de umas para as outras.

“Há dois tipos de pessoas, os que agarram e os que largam. Pertenço à última categoria. Só por meio de tralha que coleciono consigo agarrar recordações ou pessoas, assim consigo guardá-las em segurança nos bolsos do casaco.”        
 «O desassossego da noite» de Marieke Lucas Rijneveld 

Na intertextualidade entre livros, Cas tem os bolsos cheios de coisas que queria perto de si, enquanto Íris "está tão habituada a estender a mão para o lugar vazio, os seus dedos perderam-se nas profundezas do bolso vazio da sua vida (...)"

Íris, 45 anos,é mãe, esposa, professora, directora, vítima e lutadora e é também uma mulher vazia e despedaçada em diversos sentidos. É uma mulher carregada de dor que questiona a vida que leva. Relutante, vê cada vez mais um esforço injustificado em todos os esforços e sacrifícios que faz e fica ainda mais pesarosa perante uma hipótese remota, uma confissão que a mãe lhe faz e que lhe mostra “(…) cortando o ramo sobre o qual construir com esforço o seu ninho frágil.” que o rumo podia ter sido outro, há mais de trinta anos.

Com esforço ou sem ele, não são todos os ninhos frágeis? Ou fragilizam-se perante o reabrir de feridas do passado que se julgavam totalmente suturadas? Quantas camadas de dor esconde o passado?

“Miki: «eu gosto de jogar contra mim próprio», uma frase que retrospectivamente ganha um significado adicional (...) porque viver com uma mulher que quase morreu de amor é um jogo contra si próprio e não traz nada de bom."

Quando nos enganamos a nós mesmos, quem é joga contra si próprio? Tapar um buraco exige sempre que se abra outro?

“(...) não ouve as palavras dela, e talvez seja melhor assim, porque ultimamente temos um problema com as palavras, pensa ela, utilizamo-las para esconder em vez de revelar. Traímos com as palavras, e talvez isso seja pior do que trair o outro, traímos com as palavras e elas castigam-nos."

Em «Dor», Zeruya Shalev explora vários processos de luto, de dor e das dinâmicas de uma vida familiar que parece a cada dia que passa mais frágil e vazia e que questiona constantemente o passado, o deles, um a um individualmente, mas também o de um país, que em todas as partes em que se divide, fracciona opiniões e uma família. E a dor tal como o passado é feita de camadas, mas a pergunta principal talvez seja: e numa mulher, quantas dores cabem?

"O tom de voz é hostil e frio, custa menos zangar-se com ela do que preocupar-se com a filha, que estupidez é esperar que quando um homem nos desilude outro nos surpreenda pela positiva, que estupidez é esperar."

Esperar é uma forma de luto? Quanta dor exige a espera?

«Dor» está escrito com um ímpeto e uma fluidez ímpares. Uma catarse íntima despertada pela dor, seja ela a do acidente, a do abandono ou a do adultério. Uma catarse intensa que questiona a vida a dois e a vida que se constrói num país dilacerado por violência. Ela pode ter construído um lar em Israel, mas o próprio país cria em cada família uma carapaça, escondendo a angústia e a inquietação: “(…) pois a dimensão da queda apenas revela a da angústia (...)

Será que Eytan (o amor do passado) pode ser também ele uma queda, uma queda fatal que danificará a tartaruga há tantos entregue a outra carapaça? 😉

“(…) e ao lado do seu corpo grande tem uma sensação profunda de casa, como se ela fosse uma tartaruga e ele a sua carapaça, sente-se cada vez mais próxima dele que por pouco não lhe conta que o tal medico de barba branca devia ser o seu amor de juventude (…)”


"O Desassossego da noite" de Marieke Lucas Rijneveld :: Opinião


“«Somos livros gastos, sem capa, do lado de fora ninguém vê do que tratamos», diz a Hanna, e rimo-nos da nossa noção de insignificância.”

Na escrita peculiar e evocativa de Marieke Lucas Rijneveld (Man Booker International Prize 2020), recuamos à época dos tazos e dos walkmans, numa fria paisagem rural, onde 3 irmãos, Os Reis Magos, se perdem no desassossego que é o abandono familiar após a morte de um outro irmão mais velho, Mathhies. Com uma voz invulgar e um pensamento complexo e criativo, somos levados pela mão de Cas que nos conduz por uma infância afogada em desapego, conservadorismo, violência e vergonha (e bosta de vaca), sentimentos associados à descoberta que é o crescimento e o mistério da morte e do luto. Os episódios oscilam entre a ternura, o lado visceral do meio rural e a palavra de Deus!

“«Um dia quero viajar para mim mesma», digo baixinho e carrego no pionés para dentro da carne macia do umbigo. Mordo o lábio a fim de não fazer barulho, um fio de sangue sai em direcção ao elástico das cuecas, penetra no tecido. Não ouso retirar o pionés, com medo de o sangue esguichar para todos os lados e em casa ficarem a saber que não quero ir ter com Deus mas comigo mesma.”

A atmosfera que a escrita de Rijneveld cria é imediata, capturando o leitor para a imaginação prodigiosa e telúrica de Cas, mas também para o evento tenebroso e infindável que é a morte e o luto por um irmão e a forma tentacular como isso vai sugando a vida desta família: “(…) só conhecíamos a faina da terra e não a que existe em nós.”

“Olhei para as minhas mãos, para as suas linhas irregulares. Ainda eram demasiado pequenas para as usar sem ser para agarrar. Agora ainda cabiam nas mãos do pai e da mãe, mas as do pai e da mãe não cabiam nas minhas, era essa a diferença entre eles e eu: podiam pô-las à volta do pescoço de um coelho ou agarrar num queijo acabado de virar no banho de salmoura. As mãos deles eram ávidas, mas, se já não conseguissem segurar carinhosamente uma pessoa ou um animal, mais valia largarem-nos e focarem-se noutras coisas.”

Mas o desassossego do luto é tal: "(…) de momento, os buracos de gelo situam-se sobretudo nas nossas cabeças.” que o foco familiar se desvia para as vacas e o revolver da terra, enquanto Cas e os irmãos, Hanna e Obbe, se tentam amanhar: "(…) os Reis Magos voltaram a montar os camelos sozinhos, apesar de a sela já ter desaparecido há muito, cavalgamos sobre o pelo áspero e temos o rabo esfolado do terreno acidentado.”

Acidentada talvez seja a palavra de ordem para descrever o dia-a-dia destas crianças que vão desabrochando, entre metáforas da vida agrícola e o descortinar dos salmos, tudo narrado habilmente por Cas enquanto tenta compreender como aumentar o prazo de validade da sua família, surpreendo o leitor com as comparações de que é capaz nos seus (ainda) ternos doze anos, referindo-se ao mutismo da mãe, que fica com os lábios cerrados como duas lesmas quando acasalam ou o pai, que cego de raiva tem os olhos pretos e contraídos como caganitas duras de coelho. Ou ela mesma, Cas, que se sente como uma lista de compras usada e amarrotada, à espera que lhe voltem a tocar e alisar.

“Tal como no Velho Testamento, também eles repetem infinitamente as mesmas palavras, o mesmo comportamento, os mesmos padrões e rituais. Mesmo quando nós, seus seguidores, nos afastamos cada vez mais deles.”

São muitas as questões que esta narrativa levanta, mas acima de tudo questiona a fé no abstracto, quando o que é palpável e próximo se afunda mesmo diante dos olhos. Questiona o peso da morte e da culpa, do quão frágeis e vulneráveis são os que “sobram” a essa morte e que ficaram com as recordações e o dever de honrar. Mas “sobra” também o direito a um futuro, ainda por construir e para o qual precisam de amparo. Questiona-se tanto ou mais o corpo e a sua necessidade de proximidade, afecto e respeito; ou o direito a chorar, a lembrar e a falar do que se sente.

“Na perda encontramo-nos e somos quem somos: seres vulneráveis como filhotes de estorninhos nus, que caem do ninho e esperam ser apanhados. Choro pelas vacas, choro pelos Reis Magos, por pena, e depois choro por mim, ridícula, vestida com um casaco de angústia, mas depressa volto a limpar as lágrimas. (…) Se as lágrimas tivessem cheiro, ninguém mais choraria às escondidas.”