sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Efeito Metamorfose - Entrevista com Tânia Ganho

Após a leitura de 'Metamorfose à Beira do Céu' foi impossível resistir a comentar com a tradutora a magnitude das palavras que compõem com magia e ternura este livro cheio de Efeitos.

Terminei ontem "Metamorfose à beira-céu" quem traduz assim torna um livro seu, só pode!!! Parabéns em meu nome e do blogue
Efeito dos Livros

Gostamos de dar a conhecer o avesso dos nossos livros, e a tradução é um deles. Pedimos à tradutora de 'Metamorfose à Beira do Céu', Tânia Ganho, que nos desse uma entrevista e nos falasse do processo meticuloso que foi esta tradução.

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Traduzir é mais do que um trabalho de bastidores do texto, é uma tarefa nobre, que permite levar uma história a leitores que não dominam a língua original. Além de tradutora é, também, escritora. Em que medida conhecer os meandros da criação literária a ajuda no seu trabalho de tradução?

O facto de ser escritora cria-me uma responsabilidade acrescida enquanto tradutora, porque tenho plena consciência do tempo e esforço que são necessários para criar uma obra de qualidade. E faz com que esteja naturalmente atenta, não só à linguagem - ao ritmo das frases, às aliterações, às metáforas -, mas também à própria arquitectura de um romance, à forma como as personagens são desenvolvidas e o enredo explorado. O meu objectivo, quando traduzo, é produzir um texto que, em português, se possa ler com a naturalidade e a beleza do texto original, como se fosse meu.

E é também leitora. Nunca tem a tentação de inventar um novo final? Castigar uma personagem mais teimosa? Ajudar uma personagem em apuros?

(risos) Não, por acaso nunca senti a tentação de mudar o final ou de castigar as personagens de outro autor, mas é verdade que às vezes gostaria de alterar alguns pormenores que, enquanto leitora e escritora, me parecem menos “felizes”. O que, sim, faço é corrigir pequenas incoerências, sempre com a autorização do autor. É a vantagem de traduzir autores vivos, faço questão de os contactar e discutir erros históricos ou factuais, ou inconsistências. Se o autor diz que uma personagem está sentada e umas linhas abaixo descreve que ela se senta, eu escrevo-lhe a perguntar se afinal estava sentada ou de pé e, até hoje, os autores apreciam este meu trabalho de revisão, tal como eu própria agradeço que me chamem a atenção para estas pequenas falhas – absolutamente naturais – nos meus romances.

De que língua prefere traduzir? Porquê?

Prefiro traduzir do inglês, porque é a língua mais natural por mim, uma vez que a estudo desde os nove anos, mas gosto muito de traduzir do francês e do espanhol por terem um ritmo e uma sintaxe mais parecidos com os do português.

Crê que os livros podem ser diferentes por serem escritos em línguas diferentes? Este Metamorfose à Beira do Céu seria diferente se tivesse sido escrito originalmente em inglês ou português? Nota-se a influência da língua na forma como a história é contada?

Os livros podem ser – e, muitas vezes, são – diferentes em línguas diferentes, mas o objectivo de um tradutor é conseguir que as duas versões sejam o mais próximas uma da outra possível. Espero que um livro como 'Metamorfose à Beira do Céu' tenha uma linguagem tão bonita e onírica em português como em francês. O universo do Mathias Malzieu é universal, porque explora o mundo dos sonhos, da fantasia, e creio que todos nos identificamos com isso, seja em português, francês ou grego. O meu romance, 'A Mulher-Casa', por exemplo, recorre a muitas referências culturais francesas – desde os monumentos históricos de Paris à gastronomia francesa –, mas tenho a certeza de que o leitor português consegue apreciá-lo tanto como um leitor que leia o texto em francês. Um romance como 'O Filho do Desconhecido', de Alan Hollinghurst, que está carregado de referências literárias e históricas inglesas seria uma obra completamente diferente – e mais pobre – em português, se eu, enquanto tradutora, não tivesse introduzido uma série de notas de rodapé a explicá-las. Seria, indubitavelmente, um livro diferente do original. Dito isto, é claro que há frases que resultam
muito melhor numa língua do que noutra, mas é aí que o tradutor tem de conseguir ser tão criativo como o autor e encontrar soluções satisfatórias, de modo a que o texto seja tão bom quanto o original.

Certamente que há livros cuja leitura prefere a outros. Este é um deles?

Este é, sem dúvida, um dos livros que mais gostei de ler e traduzir, não por ter sido um desafio linguístico, mas por me ter transportado todos os dias, ao longo de um mês, para um universo que não é o da minha realidade quotidiana: o universo dos sonhos, onde existem mulheres-pássaros e homens que tomam poções mágicas e se transformam em aves de plumagem escarlate.

Comove-se se traduzir uma história de amor? 

Comovo-me muito a traduzir, como qualquer leitor, quando a história é envolvente e humana, mas não necessariamente de amor. Vieram-me as lágrimas aos olhos no final de 'Metamorfose', quando Endorfina se despede, no telhado do hospital, do acrobata transformado em ave; e também na cena do funeral, com todas as personagens vestidas de animal como se fossem para um baile de máscaras – bela homenagem que podemos prestar a um amigo, a de celebrar a vida em vez de chorar a morte. Houve um livro que me fez chorar muito: 'A Vida em Surdina' de David Lodge, porque é comovente assistirmos à perda de audição do narrador e, no fim, à morte do pai e à visita a Auschwitz.

Que parte de 'Metamorfose à Beira do Céu' preferiu traduzir?

O fim, a cena da despedida no telhado do hospital. Achei-a belíssima.

E qual lhe ofereceu maiores dificuldades?

A tradução do termo cascadeur, que é uma espécie de duplo de cinema/acrobata, mas não temos um termo em português que descreva de uma maneira tão concisa a ideia de cascade.

Contactou com o autor durante o processo de tradução? O que lhe diria se o encontrasse?

Por acaso não senti necessidade de recorrer ao autor para resolver os meus problemas de tradução, mas gostaria muito de o encontrar. Quando o vir, um dia, dar-lhe-ei os parabéns por ser um artista tão talentoso e versátil. Mathias Malzieu é, além de escritor, um excelente músico. E mandava um beijo à Olivia Ruiz, musa do autor, e que é uma cantora formidável em palco. ;-)

 A Tânia é uma das poucas pessoas que já leu todo o livro. Que recomendações, avisos, apelos faz aos leitores deste livro? E a quem não sabe ainda sequer que este livro existe?

Um aviso: Vão apaixonar-se. Uma recomendação: Leiam também o livro anterior do Mathias Malzieu, 'A Mecânica do Coração', sobre um menino que nasce com o coração defeituoso e, com a ajuda de um relojoeiro, passa a viver com um relógio no peito, um relógio que não pode sofrer as pressões de uma paixão. É uma história magnífica.

Quando lhe propusemos esta entrevista classificou o livro como 'un petit bijou'. Como é que traduziria esta expressão?

Uma pérola, mas adoro a tradução literal: uma pequena jóia.

E agora, uma pergunta formulada por um leitor, via facebook, Bartolomé Bauz pergunta «Dice Rilke que es necesaria una vida para escribir un verso. ¿Cuántas vidas ha necesitado para escribir un libro tan intenso como A mulher casa

Precisei de muitas vidas: da minha, porque me inspirei na minha experiência de ter vivido durante três anos na Escola Militar em Paris, e da de muitas amigas que partilharam comigo as suas impressões e angústias sobre a maternidade e a sua relação com os filhos, as noites mal dormidas, a dificuldade em conciliar o trabalho criativo com a presença avassaladora de um bebé. Servi-me da vida de uma personalidade política como Dominique Strauss-Kahn para criar a personagem do Ministro e da experiência de speechwriters como Erick Orsenna e Bruno le Maire para construir o protagonista, Thomas. E, claro, qualquer pessoa que escreva sobre Paris não está imune às vivências de tantas figuras históricas de peso, como Marie Antoinette, Madame de Pompadour, Napoleão I, nem de todos os artistas que passaram por essa cidade que tem tanto de maravilhoso quanto de desumano.


Obrigada Tânia!

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