quarta-feira, 21 de agosto de 2024

«O nome que a cidade esqueceu» de João Tordo – Opinião

“Para quem isto que escrevo, então?
Resposta: Para ti, mas não para ti:
para mim; para ti em mim.”
J. M. COETZEE, A Idade do Ferro

Pelas palavras de Coetzee entramos na vida de Natacha e George B. e desde cedo sabemos que muito dos outros ficou dentro deles. Em parte, um muito que ficou por resolver e com quem fazer as pazes.

Embora as circunstâncias sejam muito distintas, fruto daquilo que não se controla; ambos estão exilados, não obstante serem livres. As suas acções estão presas ao passado, ao medo, à solidão, mas essencialmente ao medo de ter medo, de se magoarem ainda mais, de não saberem com quem contar.

Assim, o livro divide-se porque os dois caminharão em sentidos opostos, George B. não vai superar o seu isolamento, mas Natacha vai florir e abrir-se ao mundo e às pessoas. No meio, conheceremos as histórias de cada um deles e de quem ou o quê, os moldou a serem satélites. E pensamos...

De quantos satélites se compõe a nossa história? Quantos orbitam perdidos no espaço escuro e imenso que são as memórias e o passado? Quantos se tornam lixo espacial? Ou especial?
E o que é que os satélites têm a ver com a história? Muito! Os satélites e o espaço. O vazio!

domingo, 11 de agosto de 2024

Amy e Isabelle - Opinião - Opinião

“A vida, delicada como um tecido, podia ser rasgada pelos golpes caprichosos de um momento aleatório e egoísta.”

E a frase não podia ser mais verdadeira e transversal à história das mulheres que encontramos nos livros de Strout e mesmo este sendo o seu primeiro romance já se sente a provocação e o confronto geracional, especialmente no feminino e que povoará a relação mãe-filha em Barton ou até mesmo a forte e acutilante Kitteridge.

Em «Amy e Isabelle» uma insegurança disfarçada e uma certa indiferença, caracterizam filha e mãe, respectivamente e a conturbada relação entre ambas que de forma tentacular ultrapassa as fronteiras do doméstico, seja por estarem integradas numa comunidade próxima, seja porque a dada altura trabalham juntas. Ainda assim, a hostilidade aumenta entre as duas, depois do ambiente ficar envolto em mistério e segredos, transformando a atitude de cada uma, embora o início da idade adulta faça mais estragos que qualquer outro evento.

“O verdadeiro problema, claro, era que ela e a mãe passavam o dia todo juntas. Amy tinha a sensação de que as ligava uma linha negra, uma linha não maior do que um risco feito a lápis, talvez, mas, ainda assim, uma linha omnipresente.”

E essa linha nunca se apaga em todo o livro, tal como uma outra que une as mulheres do escritório, reforçando que quando é preciso são aliadas umas das outras, mostrando uma análise muito interessante por parte de Strout sobre os ambientes por onde o mulherio prolifera.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

«Estela sem deus» de Jeferson Tenório :: Opinião


"Escutei e concordei com tudo. Não estava disposta a discutir nada com ele. Porque eu estava me aproximando do lado esquerdo do meu coração, então era preciso calar, calar até que o momento exato surgisse, até que meu grito pudesse sair puro e vulcânico, livre das amarras. Livre do peso dos homens.”
É curioso voltar a uma leitura através das frases a que se dá destaque, juntamente com um regresso ao livro anterior por aquilo que se escreveu, e ver as semelhanças que não foram sentidas aquando da leitura, no entanto, não é possível ignorá-las. A procura por um pai e a aspereza das relações entre as pessoas, juntamente com a racialização, a fé, a família, a educação (e os livros!) e o abandono, deixam feridas abertas em cada personagem e ESTELA não é excepção.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

«Sono» de Nick Littlehales :: Opinião

Ler «Sono» de Nick Littlehales é aprender que dormir 8h é um mito e só contribuí para a nossa ansiedade e é ficar desperto para termos como power nap, jetlag social, lâmpadas solares, dietas de luz, colchões e roupa de cama equivalente a nuvens, equilíbrio digital, a abordagem R90 e a controversa técnica de mouth taping.

"Ir para a cama quando não estamos cansados ou preparados para o fazer apenas causará problemas, e sentirmo-nos tensos por causa disso a meio da noite não nos ajudará a voltar a adormecer. Assim que começa a preocupação, libertam-se as hormonas do stress, como a adrenalina e o cortisol, e ficamos ainda mais alerta."

Mantendo essa ideia como a principal, já que o mito das 8h de sono é um "tamanho único" que claramente não serve a todos e juntando a organização do sono e do dia em períodos de 90m (Abordagem R90), sem esquecer que precisa tanto combater o jetlag social como reduzir o excesso de cafeína = «ser uma sombra nervosa de si próprio e claro» – e reduzir o nº de horas de uso de equipamentos, essencialmente o pc/tablet e o telemóvel.

Manter esta dieta de aparelhos e apimentar a vida com mais caminhadas, desporto em geral, música que estimule as ondas delta (para de noite) e as ondas beta (de dia!) e estipular períodos de 90m para organizar o dia-a-dia será o essencial para melhorar e reprogramar o cérebro para tempos de sono de qualidade.


Na Abordagem R90 há princípios básicos:
- acordar pelo menos 90m antes da hora de estar apto para o trabalho ou no trabalho;
- é importante manter sempre horário de acordar, mesmo quando não precisa, para não dar informações erradas ao organismo;
- organizar ciclos de 90m para estruturar o seu dia, seja com actividades, períodos de sono, de lazer;
- reduzir ou anular dispositivos antes de dormir (dieta de luz)

domingo, 7 de julho de 2024

«Terrinhas» de Catarina Gomes - Opinião

“Quer queira quer não, nas minhas memórias mais antigas parece que descubro batatas. Sempre me foram íntimas. Na casa onde eu cresci dava a impressão de que até tinham direitos”.

É entre batatas, memórias, medos e sacrifícios, e segredos, que a vida de Cláudia se estruturou. Uma vida que a partir de certa idade repele a terrinha e as perguntas que ficaram por fazer. As heranças e as coisas das quais se sabe pouco, como sempre soube pouco sobre batatas. Esse enigma, essa obsessão… onde residia o segredo que tornava as batatas da terrinha melhores que quaisquer outras?

“Durante meses a fio comprei batatas nos mais variados sítios, de mercearias a minimercados, supermercados e hipermercados. Só precisava de uma de cada vez. (…)
Pegava na batata solitária recém-comprada, numa das sobreviventes, e cozia-as às duas. Não lhes saboreava diferenças. E isso provocava em mim emoções diversas. A ausência do sabor distintivo fazia-me sentir cada vez mais próxima do dia em que as conseguiria mandar a todas embora, da libertação. Ao mesmo tempo, entristecia-me a ideia de que, ao que tudo indicava, as batatas que restaram não tinham nada de especial, que afinal eram iguais às que se podiam comprar em qualquer loja de esquina por tuta-e-meia.
Por medo de ver essa constatação a aproximar-se, persisti. Uma vez, estava a dar na televisão um programa sobre vinhos. Resolvi imitar o que vi os enólogos fazer: deixava os pedaços de batata tardarem-se-me longamente no palato, até se desfazerem.”

segunda-feira, 17 de junho de 2024

"O segredo dos teus olhos" de Eduardo Sacheri :: Opinião

“O segredo dos seus olhos”, aclamado primeiro romance de Eduardo Sacheri, foi adaptado ao cinema por Juan José Campanella, arrecadando diversos Prémios, entre eles, o Óscar de Melhor Filme Internacional (2010) e um Goya e ainda em 2016 foi inserido na lista dos 100 Melhores Filmes do Século XXI pela BBC. As ovações não são em vão, tanto livro como filme são dois objectos de culto distintos e amplamente intensos.

“Muitas vezes me surpreendeu notar no meu espírito certa alegria culpada perante os horrores alheios, como se a circunstância de sucederem coisas pavorosas aos outros fosse um modo de afastar da minha vida tais tragédias. Uma espécie de salvo-conduto.”

Benjamín Chaparro era o dono desse salvo-conduto, no entanto, um homicídio de uma bela mulher e o coração dilacerado do marido porão chaparro numa luta obstinada por descobrir o culpado, como se esse crime lhe desse “a oportunidade de ver reflectidos, nessa vida destroçada pela dor e pela tragédia, os fantasmas dos meus próprios medos.” 

sexta-feira, 7 de junho de 2024

«O que é o quê, a história de Valentino Achak Deng» de David Eggers - Opinião


"(...) o mundo que conheci não é muito diferente do retratado nestas páginas. (...) sabíamos que as nossas histórias tinham de ser bem contadas (...) nenhuma privação ou perda era insignificante."

As palavas são do próprio Achak Deng sobre a forma que David Eggers encontrou para biografar grande parte da vida deste «lost boy» vítima da guerra civil e da ebulição étnica que vem assolando o Sudão, especialmente o Sudão do Sul, desde 1972 com a quebra do acordo de Addis Abeba, dividindo ainda mais a região e as suas diferenças étnicas e fundamentalismos religiosos e daí o título, porém, pode até ser uma metáfora para tudo o que aqui é contado, tornando difusa a linha que separa a realidade da ficção, não obstante, a violência, o abandono, o medo e as dificuldades e a enorme miséria por que qualquer povo passa perante a perseguição; ficando por vezes confuso saber quem persegue quem e porquê.

"Diz-me, onde está a tua mãe, Michael? Alguma vez a viste aterrorizada? Nenhuma criança devia ver tal coisa. É o final da infância quando vemos o rosto da nossa mãe sem expressão, os olhos baços, mortos. Quando fica derrotada ao ver simplesmente a ameaça a aproximar-se. Quando não acredita que é capaz de nos salvar."