segunda-feira, 17 de junho de 2024

"O segredo dos teus olhos" de Eduardo Sacheri :: Opinião

“O segredo dos seus olhos”, aclamado primeiro romance de Eduardo Sacheri, foi adaptado ao cinema por Juan José Campanella, arrecadando diversos Prémios, entre eles, o Óscar de Melhor Filme Internacional (2010) e um Goya e ainda em 2016 foi inserido na lista dos 100 Melhores Filmes do Século XXI pela BBC. As ovações não são em vão, tanto livro como filme são dois objectos de culto distintos e amplamente intensos.

“Muitas vezes me surpreendeu notar no meu espírito certa alegria culpada perante os horrores alheios, como se a circunstância de sucederem coisas pavorosas aos outros fosse um modo de afastar da minha vida tais tragédias. Uma espécie de salvo-conduto.”

Benjamín Chaparro era o dono desse salvo-conduto, no entanto, um homicídio de uma bela mulher e o coração dilacerado do marido porão chaparro numa luta obstinada por descobrir o culpado, como se esse crime lhe desse “a oportunidade de ver reflectidos, nessa vida destroçada pela dor e pela tragédia, os fantasmas dos meus próprios medos.” 

sexta-feira, 7 de junho de 2024

«O que é o quê, a história de Valentino Achak Deng» de David Eggers - Opinião


"(...) o mundo que conheci não é muito diferente do retratado nestas páginas. (...) sabíamos que as nossas histórias tinham de ser bem contadas (...) nenhuma privação ou perda era insignificante."

As palavas são do próprio Achak Deng sobre a forma que David Eggers encontrou para biografar grande parte da vida deste «lost boy» vítima da guerra civil e da ebulição étnica que vem assolando o Sudão, especialmente o Sudão do Sul, desde 1972 com a quebra do acordo de Addis Abeba, dividindo ainda mais a região e as suas diferenças étnicas e fundamentalismos religiosos e daí o título, porém, pode até ser uma metáfora para tudo o que aqui é contado, tornando difusa a linha que separa a realidade da ficção, não obstante, a violência, o abandono, o medo e as dificuldades e a enorme miséria por que qualquer povo passa perante a perseguição; ficando por vezes confuso saber quem persegue quem e porquê.

"Diz-me, onde está a tua mãe, Michael? Alguma vez a viste aterrorizada? Nenhuma criança devia ver tal coisa. É o final da infância quando vemos o rosto da nossa mãe sem expressão, os olhos baços, mortos. Quando fica derrotada ao ver simplesmente a ameaça a aproximar-se. Quando não acredita que é capaz de nos salvar."

terça-feira, 4 de junho de 2024

«Cem anos de perdão» de João Tordo :: Opinião

Se «Águas Passadas» não movem moinhos, ladrão que rouba ladrão tem «Cem anos de perdão». E estivessem certos os provérbios, o ritmo dos thrillers de João Tordo teriam por certo outro tom e embora este «Cem anos de Perdão» ainda comece com algum humor, rapidamente o cenário do crime anula qualquer risada que pudéssemos dar com um dupla de polícias trôpegos, no meio de uma ilha remota algures ao largo de Inglaterra. Aliás, Cícero está preso e o cenário na prisão está pejado de predadores e Pilar sobrevive na fria Helsínquia, rodeada de homens feios e pesadelos que adensam os seus traumas.

"(...) os pesadelos persistiam. O clarão. A memória dos dias no hospital. Os ossos do rosto desfeitos, os dentes perdidos. A recuperação lenta, morosa. Alguém lhe dissera que uma pessoa precisava de oito anos para resolver um trauma, se fosse assumido e tratado. Quanto tempo demoraria daquela maneira - oitenta anos?
(...)
O desejo, o sexo, o jogo do gato e do rato, a adrenalina que, temporariamente, lhe mitigava a ansiedade. O regresso, uma e outra vez, ao mesmo ritual perverso. Quando desligou, lembrou-se das <<características», repetidamente lidas nas reuniões: Temendo o abandono e a solidão, ficamos e regressa- mos a relações dolorosas e destrutivas, escondendo a nossa dependência de nós e dos outros, cada vez mais isolados e alienados dos amigos, das pessoas que amamos, de nós próprios, de Deus."

domingo, 26 de maio de 2024

«Águas passadas» - de João tordo :: Opinião

"Fui eu quem a descobriu, à afogada, no meu passeio matinal pela arriba. E a culpa nasce precisamente daí - de o meu temperamento melancólico se alimentar positivamente da morbidez; de o sofrimento ser o seu húmus mais fértil. Ao encontrar o cadáver, a minha vida ganhou novo alento.
Vergonhosamente, desabrochei."

É com esta descrição dele mesmo que Cícero se apresenta. Parte do alento que tinha perdido, sabemos em breve, deve-se à falta que Simples lhe faz, o cão que morreu faz pouco tempo. Mas a maior parte do seu sofrimento data de anos, muito antes de se ter tornado um eremita à beira da falésia na escarpada Azóia. E logo aí conquistou a minha atenção. Eu vi-me, contemplativa como Cícero e acompanhada de um cão, nos trilhos que serpenteiam o precipício com vista para o Atlântico. 

E claro, ter sabido que a série está a ser adaptada para série televisiva, colocou a leitura noutro nível. Eu ia lendo e fazendo o meu próprio casting. 

Quando o corpo de Charlie é descoberto, ficamos a conhecer a Subcomissária Pilar Benamor, a quem é pedido: "caso decida ir buscar a pobre rapariga ao Inferno, por favor, não olhe para trás no regresso.". Evocando o mito de Orfeu, o legista parece adivinhar os horrores que aí irão, embora Cícero já nos tenha dito que ele voltará a matar.

terça-feira, 14 de maio de 2024

«Quarto de despejo» de Carolina Maria Jesus - :: Opinião

"O que aborrece-me é elas vir na minha porta para perturbar a minha escassa tranquilidade interior (...) Mesmo elas aborrecendo-me, eu escrevo. Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu carater. A unica coisa que não existe na favela é solidariedade. Veio o peixeiro Senhor Antonio Lira e deu-me uns peixes. Vou fazer o almoço. As mulheres sairam, deixou-me em paz por hoje. Elas já deram o espetaculo. A minha porta atual- mente é theatro. Todas crianças jogam pedras, mas os meus filhos são os bodes expiatorios. Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade.

Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer especie de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos socegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas."

terça-feira, 30 de abril de 2024

«Três» de Valérie Perrin :: Opinião

Quando nos dizem que um livro tem uma personagem que é parecida connosco a curiosidade fervilha e a leitura é inevitável, certo?

Foi o que aconteceu com «Três» de Valérie Perrin e também por ser um livro que vem com banda sonora e ter música faz toda a diferença. 

Ainda assim, para as aventuras de Nina, Adrien e Étienne e claro Virginie 😉 faltaram algumas como, «She lost control», uma ou outra incontornável dos Depeche; ou então, basta colocar a masterpiece dos Nirvana, «Nevermind» e deixá-lo em repeat.

“And for this gift I feel blessed
Our little group it's always been
And always will until the end”


Ainda assim, desde o início, a minha cabeça cantarolou muitas vezes a eterna «Le Temps De L'amour» de Françoise Hardy, muito por culpa desta introdução:

domingo, 28 de abril de 2024

«A mãe e o crocodilo» de José Gardeazabal - Opinião

“A minha mãe conta que comecei a caminhar para trás. Ela dava-me a mão e eu avançava de costas, sem sequer olhar. Não acredito. A minha mãe diz que foi precisa imensa paciência até eu me resigna a andar para a frente.”

“Os sentimentos são um lago onde as pessoas se molham até ao pescoço e eu estou do lado de fora porque não sei nadar.”

Este é Vladimir e nós vamos continuar na dúvida como ele. Ou vamos duvidar dele. É uma escolha do leitor e vai determinar o quanto nos podemos divertir, sensibilizar, rir ou chorar com as dúvidas dele, do crocodilo e do gato que domem juntos no cimento, com a mãe, os vizinhos e vamos ainda pensar nas suas dores e dúvidas perante o mundo. Vamos cavalgar juntos no crocodilo e filosofar com eles. 

“A minha mãe está há três anos a falar sozinha a tentar dizer o que pensa. Não é muito tempo.”

Vladimir é filho de pai solteiro e mãe solteira, vive a cuidar da mãe e de Benito, o crocodilo 🐊 Vivem os três à procura de se compreendem enquanto esperam o futuro, porque o futuro é um sítio onde se pode gritar, mas... “Na nossa casa, o passado e o futuro são tão iguais que não lhes vemos a cara quando dançam.”