segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Natureza Morta, de Louise Penny - Opinião

Na manhã do Dia de Acção de Graças, Three Pines perde uma vida. Na floresta silenciosa, Jane Neal permanece morta, como que por erro, talvez fruto de uma flecha perdida. Num pano de fundo idílico, abundam famílias abastadas e casas vitorianas, um cenário em tons suaves que roçam os de uma aguarela. Mas tal como numa aguarela, a sua vitalidade pode ser posta em causa com uma simples gota de água mais ácida, mais venenosa. E Armand Gamache, um inspector à antiga, rigoroso, desde o trato ao trajar, será rigoroso também em descobrir qual a serpente que ameaça floresta tão encantadora.



Esta poderia ser a minha adaptação à sinopse original. Apeteceu-me dar-lhe um toque de comentário a quadro exposto em museu, já que neste livro tudo tendo a ser belo e perfeito, cuidado e harmonioso. Até mesmo o inspector, recorrendo a um modelo clássico, um homem bem vestido, culto, aparentemente sem fantasmas ou esqueletos no armário, sensível, muito humano, que surpreende pelo lado metódico, sem atingir contornos de autoritário ou psicótico com o rigor com que actua e como quer que os seus subordinados actuem.
Gostei de Gamache, mas gosto mais do típico anti-herói.

Este "Natureza Morta" é tão perfeito que parece limado para, em nada, ferir o leitor, até a situação com o casal homossexual é contida e pouco acusatória, sempre sem ferir susceptibilidades. É como se tudo tivesse sido avaliado ao mais pequeno milímetro para que nada, efectivamente nada, ganhasse vida! Estou a fazer-me entende!?
Natureza Morta é, em si, o retrato da moderação, da tolerância, do moralismo, do politicamente correcto... ou seja, fictícia!!!
O que eu realmente gosto mais é mesmo essa alusão no título, essa metáfora tão bem conseguida. Uma sociedade, mesmo que mini, que pretende ser tão perfeita e bela que não é, nada mais nada menos, que um emaranhado de segredos e falsidades.
É nesse novelo que se traça a investigação e bem ao jeito clássico, se vai, destapando os buracos de cada vida, sejam eles importantes ou não, mas só se saberá depois de desvendados e enquanto isso, o leitor vai espiando essas tais vidas perfeitas, cheias de falsas aparências.

Nas pinceladas deste Natureza Morta nem o crime choca, nem a forma de o conceber é hedionda, como se também disso as pessoas devessem ser protegidas. Tudo está emoldurado, a cobiça, o crime, o medo, as falsas intenções... tudo é plácido e pouco instigado, para que a paz não seja perturbada.
Mas até a paz tem sombra e nessa sombra, nessa escuridão, o que se esconde?
Digamos que este livro explora aquilo a que podemos chamar de uma paz podre.

«Quem sabe o mal que se esconde no coração dos homens?» (pp.88)

Acredito que este primeiro livro da série Gamache seja como uma obra de arte, quer isto dizer, cada leitor fará a sua própria avaliação e sentir-se-á mais ou menos próximo com o elenco. Se isto fosse adaptado ao cinema ou série, seria fã do casal homossexual.

É curioso estar agora a escrever sobre este livro e ter marcado uma passagem sobre a importância de saber perder e aceitar a mudança e ter sublinhado uma frase, sussurrada, impronunciável por uma psicóloga "(...) acho que muitas pessoas amam os seus problemas. Eles proporcionam-lhes uma série de desculpas para não crescerem e seguirem em frente." Todo esse diálogo com Myrna é muito real, muito próximo. Gostei.
A parte curiosa é estar a ler "Saber perder" e "As três da felicidade" e todos os livros irem nesta direcção e seguirem esta premissa de Júlio César, em Shakespeare.

«Não é dos astros, caro Bruto, a culpa, mas de nós mesmos, se nos rebaixamos ao papel de instrumentos.» (pp.164)

Apesar de este ter sido um policial adocicado e sem me causar arrepios, a procura pela má semente assemelha-se em algumas partes à minha série favorita, especialmente por me fazer pesquisar por nomes e suas respectivas frases imortalizadas.

“Sou a favor do canibalismo compulsório. Se as pessoas fossem obrigadas a comer o que matam, não haveria mais guerras.”, Abbie Hoffman



Uma leitura com o apoio, DOM QUIXOTE

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