segunda-feira, 21 de março de 2016

IMPUNIDADE de H. G. Cancela :: Opinião


Em «Impunidade», Cancela redesenhou o conceito de esplendor, retirou-lhe o brilho e a glória das coisas belas, mas carregou-o de obsceno e amoral, construindo um romance que esmaga e domina o leitor, deslumbrando-o.
Estrategicamente, o narrador traça um plano de expiação com o leitor envolvendo-o no relato despudorado e numa trama forte e sufocante, carregada de episódios sujos, violentos, amorais, numa espiral destrutiva, para a qual o leitor se sente puxado, mas igualmente enjoado e enojado por pertencer.

"O nós, ali, a primeira pessoa do plural, mal permitia ultrapassar a contradição dos termos perante o que enunciava. A constatação de uma solidão anterior a qualquer imagem da pertença ou do afecto. Porto de partida, ponto de chegada."

Errático, um homem, pai, irmão, pecador, narrador, portador do mal... entra em cena em busca de duas crianças, totalmente vítimas de abandono, deixadas num sufocante apartamento na já quente Sevilha, aos parcos cuidados de uma inconstante empregada, com um filho, Amir, que reúnem em si, flagelos sociais que entrarão em colisão com os flagelos destas estranhas relações familiares.
Errática também, melancólica, destruída, uma mulher, mãe, irmã e o objecto de desejo, é em si mesma a personificação do abandono, da dúvida, talvez da culpa, talvez da sumptuosidade.

"Aquilo éramos nós, sem espaço para dúvidas. Cada um sozinho diante do outro como se permanecesse imóvel perante si mesmo. Não no reflexo de um espelho, susceptível de produzir um mínimo de identidade (...) continuava a ser eu. Continuava a ser ela (...) Com a extensão da posse e da privação, distinta na carne, no género, na vontade."

Desde cedo se anunciam tragédias perante este elenco que nos fazem questionar se a violência pode aqui assumir o papel de personagem central, bem como se questiona se existe total ausência de amor e para que plano é remetida a culpa, a consciência e claro, a impunidade.

"Branca, pequena, a pele amarfanhada, dir-se-ia a personificação da culpa. Uma forma de culpa. Aquela que reverte não sobre a causa, mas sobre a consequência, atribuindo à vítima aquilo que o agente rejeitou para si mesmo. E ela própria recusando-se a aceitar, ou vendo-lhe negada, a língua com a qual talvez conseguisse acusar aqueles que a condenavam."

A insuportável destruição que os personagens causam ganha uma aura de introspeção com determinados parágrafos mais filosóficos, tentando um olhar que contorne a patologia aqui relatada. Mas "não há nada para dizer", a impunidade repete-se e pauta até ao fim este jogo de sobrevivência, num crescendo de violência como forma de camuflar a culpa.
É o desejo e a obsessão, o relato da obscenidade do corpo proibido do outro e o conflito constante, latente nas descrições pulsantes e duras no quão gráficas conseguem ser, trazendo até ao leitor um constante peso e um certo pulsar de nojo pelas personagens. Até mesmo quando da evocação do passado como causa do abandono e do terror em que a história se desenrola, continuamos a sentir censura e repulsa pelo irredutível do desfecho que simboliza a total desumanização de todas as personagens.

"Eu suponha conhecer o preço. Humilhação e abandono. Voltei-me para trás. Ele poderia morrer, eu poderia matá-lo, apagá-lo do mundo e da memória, mas ele continuaria a ter existido. Era essa existência que, desprovida de peso e de densidade, se transformava agora no estado definitivo."

É estranha a beleza que este romance encerra pois apesar de toda a violência e profanação, exerce enorme poder sobre o leitor, não lhe permitindo qualquer indiferença perante o individualismo desta impunidade, mas causando-lhe uma certa inércia, adormecendo-lhe a consciência, pois só assim partilhará o conforto da fuga juntamente com os personagens.

"(...) Talvez precisasse de espectadores, mas prescindia de aplausos."

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Um livro RELÓGIO D'ÁGUA

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