A leitura é uma viagem por palavras nacionais, estrangeiras, umas cultas, outras menos, umas mais rebuscadas, outras simplificadas, algumas levam-nos às lágrimas, muitas delas às gargalhadas e as melhores, aquelas que nos deixam abismadas, tamanha é a profundeza da ideia, da genuinidade expositiva, onde a simples contemplação daquelas palavras nos deixa assim: sob o Efeito dos Livros!
quinta-feira, 17 de setembro de 2020
Opinião "Uncommon Type / Papéis Diferentes" - Tom Hanks
segunda-feira, 14 de setembro de 2020
Opinião "Clock Dance" de Anne Tyler
sábado, 12 de setembro de 2020
Opinião "Os rapazes de Nickel" de Colson Whitehead
Com a chegada do correio, o pouco que ainda vamos recebendo por estas paragens, segue-se sempre a divisão dos pães literários entre as duas metades que compõem esta casa. “Os rapazes de Nickel” é, sem sombra de dúvida, uma leitura que figura do lado da metade negra mas por vezes, há livros que chamam por nós e no qual pegamos sem saber o que vamos encontrar ou o quanto o seu conteúdo se encaixa no que habitualmente gostamos de ler.
Baseado no caso real de um reformatório mascarado de escola, palco de segregação e incontáveis horrores, “Os rapazes de Nickel” começa com a descoberta, anos após o fecho e venda das terras, de corpos mutilados e campas anónimas nas imediações do local. Durante décadas de funcionamento, as queixas de violência sempre pairaram sobre a instituição como uma sombra mas nunca se fez justiça, nunca se lutou por quem lá pereceu. Quantos miúdos morreram assim? E quem não morreu, como levou a sua vida dai para a frente?
“Era aquilo que a escola tinha feito aos rapazes. Não acabava após a saída dos alunos. Amassava-os de todas as formas, deixava-os bem danificados e incapazes de te uma vida decente"
E é assim que ficamos a conhecer Elwood Curtis, um miúdo inteligente com um futuro que tinha pernas para andar mas cujo tom de pele e a década em que nasceu, o colocaram num mal entendido que ainda hoje muda a vida de muita gente. A passagem pela Nickel, mais que um solavanco na estrada, altera por completo o terreno palmilhado daí em diante por Elwood e por outros que como ele viveram os horrores perpetrados por quem seriam os seus cuidadores. Há imagens que não se esquecem, sons que retesam todo o corpo mesmo anos depois e há cicatrizes, físicas e emocionais, que nunca saram. Como é possível sarar uma ferida que continua a sangrar?
É impossível não sentir um arrepio na espinha perante o que o nosso imaginário vai criando com as descrições de Whitehead. Ele coloca-nos lá, mesmo sem sequer fazermos ideia do que poderá ser um inferno assim.
Onde me falta o brilhantismo na minha opinião, coloco o que roubo à divulgação do livro para vos sugerir a leitura desta novidade.
“Um romance de brutal impacto emocional. Uma obra literária que exibe a pujança de um escritor em plena forma, que explora a ferida aberta da segregação racial e levanta uma poderosa voz contra a injustiça”
sexta-feira, 11 de setembro de 2020
Opinião "Extremo Ocidental"
Calma, não vai sair daqui uma roadtrip com "Extremo Ocidental" como guia. O nosso encontro foi apenas um acaso do destino e calhou as nossas coordenadas se alinharem.
Por escrito percorri estes mais de mil e tal quilómetros de costa a visitar sítios onde nunca fui, a reencontrar os areais que conheci toda a minha vida e a compreender que somos um país cheio de locais, histórias e pessoas interessantes para conhecer.
De norte a sul mergulhamos nas praias e nas histórias, quase que nos sentimos como se ali estivéssemos
e alguém sentado ao nosso lado, a sentir o mesmo sol e o mesmo vento, nos contasse tudo sobre si e o local em que nos encontramos. É assim, a saltitar costa abaixo e indo até Marrocos, que ficamos a saber que nunca houve um pessegueiro lá na ilha e que existem parques de campismo onde não se acampa.
Este "Extremo Ocidental" permite-nos conhecer um bocadinho mais da alma do nosso país, da sua geografia e a sua gente. Se antes falei de roadtrip em tom de brincadeira, aqui fica a sugestão:
Percorrer a costa de Norte a Sul de carro, mota, carrinha ou caravana (vá vou deixar o a pé e de bicicleta de lado sem ser contra) é uma óptima sugestão para as vossas próximas férias. Com este e outros livros como companhia, quem sabe não ficam a conhecer um lado de Portugal que desconhecem.
E por falar em livros, lá para o meio da Costa, algures antes de chegar a Vieira de Leiria somos presenteados com um episódio hilariante e que já me veio à memória algumas vezes ao longo deste verão, especialmente se vejo alguém sentadinho na sua cadeira a ler como se estivesse na santidade do seu lar. Todo o leitor sabe o pesadelo (mas também o prazer) que pode ser "ler na praia", excepto quando o mar nos prega uma partida ou calhamos numa praia cheia de gente barulhenta.
Boas viagens e boas leituras.
sexta-feira, 4 de setembro de 2020
Opinião "O Segredo de Rose"
«Uma mulher desnecessária» de Rabih Alameddine :: Opinião
"Aaliya, a sublime, a louca."
Aaliya, a mulher desnecessária. Aaliya a mulher não religiosa, mas crente no poder dos livros, na salvação pela palavra, pela Literatura.
Aaliya a caprichosa, a rebuscada, a livreira, a tradutora, a mulher desemparelhada do seu tempo, da sociedade que a envolve e ainda assim uma mulher tão necessária ao futuro irreconciliável entre realidade e ficção.
"Gosto de homens e mulheres que não encaixam bem na cultura dominante, ou, como Álvaro de Campos lhes chama, estrangeiros aqui como em toda a parte, casuais na vida como na alma. Gosto de outsiders, fantasmas a errar em salas cobertas de teias de aranha no castelo maldito de ter que viver."
"Incomodou-me, a vida toda, eu não ser igual a toda a gente. Durante anos, consegui convencer-me de que era especial, de que ser diferente era uma escolha. (...) Sou única, um indivíduo, não simplesmente idiossincráticas, mas extraordinária. Considerava o meu individualismo uma virtude, que me protegia e estados de espírito colectivos e insanidades, que me ajudava a elevar-me acima das correntes rápidas da família e da sociedade. A ideia reconfortava-me. Só que agora não está a resultar. E não é só de agora. Já lá vai algum tempo que não consigo muralhar o meu coração como deve ser. (...)Não me saí tão bem como Gustave. Os meus muros não são estanques. Ao longo dos anos, surgiram brechas irregulares. (...)Pessoa, que conhecia a alienação ainda melhor do que Flaubert, escreveu: «Mais terrível do que qualquer muro, pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros.»Que dom para as palavras tem este poeta, que domínio das imagens."
"Não há nostalgia tão intensa como a saudade do que nunca existiu."
"Ora, poderão querer saber porque é que me empenho tanto nas traduções, se depois as encaixoto (...). Pois bem, o meu empenho prende-se com o processo e não com o produto final (...)Mas não só. No Livro do Desassossego, Pessoa escreve: «A única atitude digna de um homem superior é o persistir tenaz de uma actividade que se reconhece inútil, o hábito de uma disciplina que se sabe estéril, e o uso fixo de normas de pensamento filosófico metafísico cujo a importância se sente nula.»"
"A minha alma é um brinquedo e roer do destino. A minha sina persegue-me como um batedor experiente, como um caçador malévolo, morde-me e não me larga. Encontro outra vez o que eu pensava ter deixado para trás. Serei sempre um fiasco, no passado, no presente e para sempre. Falhar outra vez. Falhar pior*. Assisto ao desmoronamento da minha vida.
quarta-feira, 2 de setembro de 2020
«Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos» de Olga Tokarczuk :: Opinião
Em jeito de premonição assim começa «Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos», alertando para a Morte e trazendo consigo uma conclusão: o caminho pernicioso com que o Homem tem marcado a sua passagem pela Terra terá de ter os dias contados. A Natureza é divina e superior e precisa reafirmar a sua posição.
A mensagem final é clara, mas a forma como a Prémio Nobel encontrou para conduzir o leitor é extremamente rebuscada e genuína pois encontra a sua voz na narradora Janina Duszejko, uma anciã que questiona o autismo testosterónico masculino, a tristeza genuína da Natureza e vê tudo tendenciosamente negro e meio desfocado como se olhasse a realidade por um caco de vidro fosco, orientado pelo alinhamento dos planetas e as cartas astrológicas que lhe permitem conhecer as pessoas e os eventos à sua volta.
"Tenho de tomar cuidado. Só agora me atrevo a confessar: não sou grande astróloga, infelizmente. No meu carácter existe um certo defeito, que tende a obscurecer a imagem da configuração dos planetas (...). Vejo como nos mexemos às cegas num perpétuo Crepúsculo. Vejo-nos como escaravelhos capturados em caixas por uma criança cruel. É fácil danificar-nos, ferir-nos, despedaçar a nossa existência extravagante e engenhosamente fabricada. Tudo isto eu interpreto como anormal, terrível e ameaçador. Só vejo Catástrofes. Mas se, no início, está a Queda, será possível cair ainda mais abaixo?"
É sem dúvida um livro extravagante, recheado de pequenas pérolas que conquistam o leitor, seja pelas considerações ou as brilhantes descrições da natureza envolvente e até as análises astrológicas que confundem o leitor. Mas superior mesmo é a condução do enredo por uma terra pedregosa e fria, onde a luz da lanterna que alumia a Escuridão se vai extinguindo fechando assim o ciclo da premonição inicial, a inevitabilidade da Morte!
Excertos:
«Irmão mais velho» de Mahir Guven - Opinião
terça-feira, 1 de setembro de 2020
«Estou viva, estou viva, estou viva.» de Maggie O'Farrell :: Opinião
Respire fundo também o leitor, pois vai precisar. Este livro reúne 17 episódios onde a ameaça de morte foi uma possibilidade, uma constante e um pensamento ao longo da vida de O'Farrell. Nesses textos, que fluem como um romance, o leitor sente-se impelido a avançar, dono de uma curiosidade mórbida, pela proximidade de alguns episódios ou simplesmente por ser um livro muito bem conseguido, quer pela escrita escorreita, quer pela frieza com que certas palavras nos atacam e mexem com a nossa sensibilidade. Estranho? Talvez. Talvez seja mais fácil sentir enquanto se lê, por isso, leia este livro.
Para já, pense nisto: de quantos atropelamentos fugimos nós ao longo da vida? Desses "foi quase" dos quais saímos ilesos, avançamos como se nada me pudesse tocar, nada de mal pudesse acontecer, desde que eu pudesse continuar em frente, continuar a correr, continuar em movimento.
"(...) o avião que não apanhámos, o vírus que nunca inalámos, o atacante com que nunca nos cruzámos, o caminho que não tomámos. Estamos, todos nós, a deambular num estado de ignorância inocente, a pedir tempo emprestado, a aproveitar os dias, a escapar aos destinos, a escapar por uma nesga, sem saber quando será dado o golpe. Como escreve Thomas Hardy sobre Tess Durbeyfield: «Havia outra data... a da sua própria morte; um dia que se ocultava, invisível, entre todos os outros dias do ano, sem dar sinal ou fazer som quando ela passava por ele, a cada ano; e ainda assim estava inteiramente presente. Quando seria?»"
Quando seria? Como seria? Que parte do corpo atacaria?
Dividido em 17 episódios que atacam partes dispares do seu corpo, Maggie O'Farrell começa por se sentir ameaçada no pescoço, marca essa que nunca a abandonará, no entanto, a ameaça, a sentença de morte prematura chega ainda mais cedo em 77, quando ainda miúda se chegam a conclusões assustadoras que irão encaminhar decisões e experiências futuras, no entanto, o espírito fugidio e escapista da autora talvez tenham sido determinantes para partes do corpo que surgem mais adiante e as conclusões que partilha com os leitores.
"Vivi grande parte da minha vida perto do mar: sinto a sua atração, sinto-lhe a falta se não o vir regularmente, se não caminhar à beira-mar, se não mergulhar, se não respirar o seu ar. (...) Desde criança que nado sempre que posso, mesmo na água mais fria. É, na minha opinião, uma experiência muito reconfortante. Nos seus Sete Contos Góticos, Karen Blixen escreveu: «Conheço uma cura para tudo: água salgada... de uma forma ou de outra. Suor, ou lágrimas, ou o mar salgado.»"
Para além de considerações muito acertadas, existem boas referências e um ritmo imenso que prende o leitor a cada página, junto com descrições muito vívidas e partilhas muito transparentes, diria até de uma raridade genuína.
"Sou a única abstémia de chá da minha família. Acho que eles o consideram uma perversão incompreensível. Para mim, o chá sabe a restos secos de relva, bolor de folhas diluído, composto húmido misturado com um toque de fluídos corporais bovinos. Nunca o consegui suportar."
"Está alguma coisa a mexer-se dentro de mim, nas profundezas dos canais em espiral do meu estômago, algo com garras, com presas, com intenções malévolas. (...) É como se tivesse engolido um demónio."
São vários os demónios que sugam a energia a esta autora, um deles é o da rotina, da doença ou da normalidade, para combatê-los, escreve e viaja, só isso é capaz de fazer frente à inquietude borbulhante que nunca a abandona.
"Depois de ter percorrido o Mediterrâneo em 1869, Mark Twain disse que viajar era «fatal para o preconceito, a intolerância e a mesquinhez."
Ler este livro também tem algo de fatal, é uma valente viagem, recheada de sabedoria e partilha que de certeza, tocarão no âmago de algumas memórias pessoais.
*
Uma descoberta que este livro me trouxe foi o podcast «Contos Não Vendem» de Joana Neves, tradutora deste livro. Um dos episódios traz-nos o conto "O Que Veio Salvar-me", de Virgilio Piñera, lido por Manel Moreira que faz muito bem a ponte para o tema da morte, especialmente para o conto «Corpo Inteiro» neste livro de O'Farrell.
Vale a pena ouvir, aqui.